sexta-feira, 17 de maio de 2013

Clauder Arcanjo




UM CONTO DE CLAUDER ARCANJO


QUANDO O DIA CHEGOU...

(para Amadeu Baptista )

Quando o dia chegou, o vento leste não veio. Não vindo o vento leste, a noite derradeira ficou. Ficou e deixou o seu manto de lamúrias no alpendre da velha casa.

O cachorro Piau, a coçar suas pulgas, fugiu para debaixo do tamborete do velho Benedito da Conceição, que mascava, desde a madrugada, a mesma pele de fumo. “Quieto, bicho!”
Madalena abriu, com força, a janela da frente; o ruído da tramela pôs mais medo nos pelos de Piau, que fingiu um rosnar de coragem. “Quieto, bicho!” Ao perceber que até os capotes ainda não haviam descido das copas das árvores, Sinhá Madalena chamou pelos bichos. “Ti, ti, ti, ti, ti...”

Com o manto de lamúrias ainda posto na entrada, nenhuma ave nem criação deixaram o seu canto. Apenas o sardento cão, inquieto com tanto silêncio, mastigou um fiapo de rosnado. “Quieto, bicho!”

Benedito nem deu com a presença da mulher, os olhos perdidos nas lonjuras do sertão, a catar coisas por entre a vista cansada. Tudo parado demais, estranhamente vazio. Como se prenúncio de coisa ruim. De repente, um sacolejar de ossos embaixo do assento. Era Piau, tomado pela sezão do medo. “Quieto, bicho!”

Madalena bateu panelas, mexeu nas cabaças e nos pratos de ágata, a fazer, de propósito, o barulho que a manhã não trouxera. Rasgando a alvorada à força. Nada, tudo em vão. Uma névoa esquisita sobre a mataria, a pasmaceira a encobrir os mofumbos do oitão da frente; o gado, todo deitado, nem sequer a ruminar. As ovelhas e as cabras no aprisco, paradas, como se mortas. Piau correu do alpendre para debaixo de uma cadeira junto ao fogão de lenha. Na certa, à procura do calor do fogo, na tentativa de esquentar o corpo, banindo, da courama, o tremor do medo. “Quieto, bicho!”

Quase ao meio-dia, um sol, pálido, pôs seus raios na vazante do Riacho das Mulas. Piau esticou as orelhas miúdas, Madalena fez o sinal da cruz, e o velho Benedito da Conceição ajuntou as forças e levantou-se, a mão esquerda no cajado, e a direita, em pala, sobre os olhos. Estes, na direção do plantio de milho e feijão.

Um estralado esquisito na plantação, como se a quebrar as espigas e arrancar as vagens. Movimento de pressa e loucura, desespero e força, consumindo tudo. Benedito recuou para junto da porta, pegou a espingarda e convocou Piau: “Vem cá, bicho!” Quando percebeu que não seria atendido pelo cão, desceu, sozinho, os degraus da casa, metendo-se por entre os marmeleiros. Lembrou-se do conselho do caboclo Batista, e segurou no cordão com a imagem de Santo Expedito. Deu a volta no roçado, na busca de se aproximar pela parte alta.

A zoada a aumentar, como se pegasse força quanto mais a roça era destruída. Benedito caminhando quase acocorado, nem sentindo o rasgado dos espinhos na pele. “Valei-me, Santo Expedito!”

Ao chegar à ponta de trás da vazante, na ribanceira mais alta, carregou a lazarina e apontou na direção do rebuliço. A coisa devastava tudo, num chafurdo infernal. Sentiu que vinha na sua direção, tirou, então, o cordão do santo do pescoço, enrolando-o na mão da mira, cuspiu na do gatilho, e calibrou bem a vista.

Os pés de milho vinham sendo derrubados, as ramas arrancadas, numa fúria nunca vista. Quando faltavam
duas fileiras de milho e feijão entre aquilo e o velho Benedito, este aprumou-se para o tiro. A coisa surgiu à sua frente: o corpo peludo coberto com rama verde, a boca de dentes enormes e afiados, restos de espigas amarelas nos caninos. Mirou na testa larga, entre os olhos. “Quieto, bicho!” Mas, aqueles olhos...

— Meu Deus!... Valei-me, Santo Expedito!

© Clauder Arcanjo

Nota: Publica este blog este conto de Clauder Arcanjo, que me vem dedicado, com a gratidão devida pela homenagem que o seu autor me quis fazer. Fica demonstrado que, mesmo entre desconhecidos, há laços que se podem e devem estreitar, para lá de todas as distâncias.



Clauder Arcanjo é natural de Santana do Acaraú, um município do Ceará. É cronista, resenhista literário e colaborador de sites, revistas e jornais. Em 2007 publicou o seu primeiro livro de contos, 'Licânia'.

1 comentário:

  1. La distancia no existe cuando la emoción traza vínculos. Eso es algo que los bichos, sean o no cachorros, aún no han olvidado. Los "humanos" a ratos lo olvidamos pero, en algunas ocasiones, como en este relato dedicado que podemos leer hoy aquí, hay instantes de belleza que nos hacen volver a recordarlo.

    ResponderEliminar