quarta-feira, 22 de maio de 2013

Matti Rossi


POEMAS DE MATTI ROSSI


TRAGÉDIA FINLANDESA

Fartou-se, partiu,
                        com os seus pecados, com as suas virtudes, o cão
            uivou muito tempo na tumba, depois morreu,
        como morrem os cães, de fome.

A casa ficou vazia, a mulher
                        tinha partido há muito
            com Fredrikson, os filhos
andavam pelo mundo, um para os Estados Unidos.

A família sofria dos pulmões e era propensa
                        à loucura, uma das suas tias tinha visto
            Jesus Cristo no tecto do armazém de batatas,
desde então esperava a chegada de um noivo.

Um tio foi operário no Cazaquistão,
                        um velho comunista,
            fugiu dos brancos em 1918, intermediou
uma rapariga alemã, construiu uma sauna, pegou-lhe
            fogo em plena bebedeira e morreu.

Os filhos embarcaram, um
                        esfaqueou o maquinista do barco em Estocolmo
            e ainda está na cadeia, outro
perdeu o juízo nos Açores, foi a nado para a Finlândia,
            não chegou ao seu destino.

À filha viram-na pela última vez no centro finlandês de Fitchburg
            com sete filhos; o marido,
            Lobo Caçador, tinha desenterrado o machado de guerra,
            tinha assaltado um comboio de whisky e está agora
                        com Manitu.

As sorveiras estão em flor. Muitas bagas,
                        será um inverno brutal.
As rosas silvestres trepam formando um arco
pelas paredes da casa. A porta está aberta, os maçaricos gritam
                        no pantanal.

Näytelman henkilöt, 1965




– Como um cavalo voador, dizes, sonhadora.
      – E às vezes como um urso. Primeiro metia-me medo,
              sim, sim, tenho muita imaginação,
sentia a tua mão como uma
pata grande e tosca, tratava de imaginar
como seria repousar contra o teu peito peludo.
Esta manhã eras como um cavalo,
e agora mesmo começo a sentir-te
como se fosses um leão.

Cansados, mulher feliz, bem formada
cadela negra, com que
agilidade saltaste para a minha cama, tinhas comido e bebido
acreditavas que ias fazer o teu ninho.
Se soubesses quem eu sou.
Sou uma serpente de sangue turco e amanhã devorar-te-ei.

– Amanhã, devorar-te-ei, murmuro a meia voz.
– Meu amor, respondes.

Leikkeja kahdelle, 1966




Imagina, se um deles ficasse louco agora
e ardêssemos aqui
quando estão a construir um mundo melhor:

como rãs
no barro do terciário
sorrimos
mais além de milhões de anos
                        postos contra a parede
                        em algum bom museu,
                        – Isso é o que faziam antes – diz o guia,

tu sorris agradecido – Conseguiram-no
            de novo,
um gracioso acontecimento assim
no meio da tagarelice.

Leikkeja kahdelle, 1966




O PARQUE

Meu filho, isto é um parque, e aqui na sombra
está o silêncio, é um amigo teu, aprende a conhecê-lo.
Ali está a tristeza, só, com a lua ao ombro,
e ali a alegria, de mão dada com o amor, a dar voltas ao sol.
E a esperança anda por ali devagar luzindo a sua gravidez a caminho
    do jantar.

Meu filho, isto não é um parque, isto é
a zona da euromorte, a segunda, ou a terceira,
só a velocidade a que se morre a diferencia de outros parques,
tudo está calculado em alguns papéis de cinco pontas.

Não é um parque mas um campo de tiro, na erva ferros retorcidos,
cristais, corpos calcinados,
as pedras cheias de cruzes gamadas,
numa árvore um louco dispara a tudo com uma bomba de bicicleta
no lago um gato pendurado com um peso na pata,
sob os olhos salientes outro par de olhos mais malignos.

Hoje meu filho deste os primeiros passos
e caíste de bruços na gravilha. Lembra
este lugar: ruptura, sangue, lágrimas,
o gesto do teu punhinho
contra a chuva que corre ao vento chicoteando
o teu cabelo demasiado longo sobre os olhos.

Hiljaiisuus já matkatoverit, 1980




AMOR NA NEVE

Era uma manhã de domingo de finais do inverno,
o rapaz e eu respirávamos sol congelado
                        resplandecente de cristais de gelo
e soletrávamos um escrito na neve, uma antiga
caligrafia, estranha mas claramente legível:
                        Amo-vos a todos.

Naquela manhã, depois do nevão,
pôde-se ler na límpida neve dos parques de Helsínquia:
                        Amo-os.

Oh amor em declives de montanha, em lagos,
em parques infantis, em muros de pedra cobertos de gelo,
níveo amor para todos, sem consideração a ninguém
                        inesgotável
quando o indulgente inverno cobre os sujos matagais
onde se depositaram as lágrimas e os pecados de todo o mundo.

E ao pé da encosta dos trenós, rodeado por uma multidão de crianças,
                        o escrevedor:
um canzarrão grande e velho, o focinho na neve
a anotar as contas da sua vida canina:
                        Amo-vos a todos.

Bom cão, modesto, sincero:
bom ser humano, a ladrar o seu amor espontâneo
a seres iguais, sem olhar à cor da pele.

Hiljaiisuus já matkatoverit, 1980




NESTE LADO DO CORAÇÃO

Neste lado do coração ainda é noite: beneficia dela.
O menino vem aos teus braços, desenha um pássaro no ar,
o menino e tu começais a chorar quando se vai a voar.
Mas volta, traz outro consigo, lembras-te
aquele que desenhaste uma tarde,
aquele que o tempo afastou. Ris
e o menino ri-se quando voam os pássaros
para este lado do coração, e na tarde alada
distingue-se o aroma de muitos lares.

Neste lado do coração chove, é uma noite vulgar,
os pássaros foram-se, o menino dorme.
Alguém não encontra a sua casa, alguém não regressa,
alguém acaba de partir, a porta fez um estrondo,
o coração abre-se, fecha-se, chuva e mais chuva
e só se ouve um sussurro de palpitações longínquas
quando os pássaros de antanho chegam, se voltam,
voam rápidos para o outro lado do coração.

Amanhece: um espaço iluminado, cheio de solidão.
  Quando o menino acorda desenha um pássaro na tua mão.

Hiljaiisuus já matkatoverit, 1980



EM CASA MAIS DO QUE NUNCA

Quando tiro a venda dos olhos
e não me conheço a mim mesmo nem aos demais
não digas,  – Ele não está hoje em casa
ou, – Está cansado e dorme.
porque eu estou em casa mais do que nunca,
comigo mesmo, na mesa em frente àquele
                                   que era como eu
mas agora é outro, estranho, distante,
com as suas razões para isso.

Sei que o tempo passa e desaparece
e que tudo o que o menino diz é verdade e será verdade,
mas eu estou agora mais em casa do que nunca
e vejo nos olhos dos demais, vejo-me a mim mesmo
no que acabou de me incorporar,
e ele não me coage, parte, eu sei,
mas não se vai em segredo, eu vigio.

Meu amor, eu estou em casa mais do que nunca
mas o outro vai-se, eu sei,
porque o outro destes dois é inutilizável, está partido,
por isso esperamos junto à nossa mesa comum
que alguém se afaste, não eu.

Alguém se afasta, não eu,
quando tiro a venda dos olhos não tentes dizer que me fui
porque eu estou aqui, era apenas um como eu,
e agora já se foi, alguém como eu,
estranho a mim mesmo, infrequente, distante.

 Não me procures, meu amor, estou aqui,
com os olhos abertos, em casa mais do que nunca,
à minha própria mesa, aí, em frente a nós.

Hiljaiisuus já matkatoverit, 1980

Versão minha - © Amadeu Baptista




Matti Rossi, nasceu em Sortavala, em 1934. É licenciado em Letras, bolseiro nos Estados Unidos e no Instituto Shakespeare de Stratford-on-Avon; trabalhou durante cinco anos na secção finlandesa da BBC. Foi director da revista Kulttuurivihkot, entre 1978/79. É um dos poetas mais destacados da poesia política da década de 60, do séc. XX. Agora escreve uma poesia inspirada na lírica mais tradicional, como a Kavala, de que existe uma excelente tradução portuguesa.

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