THE FAMOUS GROUSE
(para Helga Moreira)
Peço-te uma pequena ave que irradie luz, aquela que trocámos
na nossa primeira praia, a que devemos ao mar
sempre que temos fome e há clarões inexplicáveis dentro das nossas casas.
A ave que nos sobrevoou sem qualquer medo depois de ter voltado
dos corações dos homens em que grassava a tristeza, erravam pelas ruas
como uma boca amarga, sobressaltadamente.
A ave que com todos os seus mistérios se opôs aos olhos
rasos de lágrimas com que enfrentamos a multidão ameaçadoramente vigilante
e nos obrigou a dar as mãos contra o pânico que as estátuas nos fizeram sentir.
A ave que declarou por nós, na única noite clara deste mundo,
uma paz sem reservas e eternamente duradoira
para que a luz se instalasse sobre as nossas cabeças
e a multiplicação dos pães fosse possível.
A ave miraculosa contra as arestas de silêncio entre nós dois,
que nos uniu as bocas porque não era tarde e nada poderia justificar a solidão
com que a nós próprios andámos enganando, ignorando
a solução dos barcos que fertilizam a linha do horizonte
e dão às rectas paralelas uma última possibilidade de encontro.
A ave a que perdemos o rastro porque o abandono comeu à nossa mesa
e em noites de insónia e desespero permanecemos confusos e distantes
sem que esperássemos nada – a árvore que em nós ramificasse
os dedos transparentes da ternura que incendeia para sempre
as chamas vivas que com certeza há nas nossas vidas.
A ave que mata a sede e concretiza nas pedras a beleza
do usufruto da memória como fonte cantante e reproduz,
não a esperança sem nome a que docilmente nos fomos submetendo,
mas uma esperança sólida e sem sombras explodindo
dos múltiplos crepúsculos que a madrugada tem.
A ave quente que nos olha descalça do cimo das montanhas
e nos inventa bálsamos desconhecidos, amor e inocência
para que não mais nos tentemos por situações de perigo.
A ave de luz na manhã incorrupta.
(in A Jovem Poesia Portuguesa /2, Porto, Limiar, 1985)
Sem comentários:
Enviar um comentário