quarta-feira, 27 de abril de 2011

A Noite Ismaelita, 2000


fragmento inicial de:

HAJJ

Conhecemos essa aparente inutilidade das mãos, o cão que as persegue
com o mistério da inutilidade, a mancha azul do sangue fechando-se tenazmente, como se já não houvesse ar
ou o frio invadisse a derradeira ilha, a derradeira cidade.
E houve quem se prestasse a tudo desconhecer, o brilho escuro dos fugitivos, os olhos em que as ciladas foram edificadas sob o peso irradiante dos piores pesadelos,
a pior amargura, a mais sublime dor disseminada pelas têmporas.
E o silêncio conquistou as sílabas silenciosas dos homens, as mais duras,
as que uma mãe quer perdurar no ouvido dos filhos, mar, pedra, perigo,
os sinais aterradores, e pararam, uma outra vez pararam onde a clausura
permanece. E eis aqui os privilégios do cárcere, alguns cigarros, uma mínima porção de serenidade,
um ou outro favor dos vigilantes, o encontro surpreendente
com o próximo amante, desconhecido. E prenderam-se à leitura, preferiram
as palavras sacramentais, as que não excluem, as que prometem
uma segunda hipótese de inutilidade, salvação, salvação, enquanto
os gritos das vítimas continuam esse alinhamento misterioso do silêncio, solidão,
a aspereza da terra humilhada até à quinta geração. Vemos as mãos
e vemos um corpo em chamas, o poder do grito, a dor intemporal, eterna,
entre as vedações onde as crianças imploram uma sopa inapreensível. E os afogados
voltam os olhos cegos para as entranhas do mundo, um fio
de sangue risca a lívida face do silêncio, a que sempre perdemos, a que golpearam, a que nenhuma invocação
ressuscitará da claridade abrangente, o olhar uma outra vez cego,
ou negro, ou parado sobre a alarmante facilidade  com que o crime é consumado.
E erguem-se os que é impossível ver erguidos, e tomam a direcção das aves
pela materialização do destino, eh pássaro, contigo arrisco o voo
para a denegação, a sétima alegria, a vigésima intolerância, o fogo
centenário que insuspeitamente descobrimos quando forjamos a lâmina
ou recebemos os golpes, a mediação inefável. E as cabeças
voltavam-se, era essa a perfeição das cabeças, surpreender a ruína,
o rastro por que a cicatriz impõe a terrível presença, o vaticínio de um novo exorcismo,
ainda outra maldição, essa velocíssima vertigem, armadilha, arrogância, inutilidade.
E escusaram-se as dúvidas e as respostas, e escreveram
o privilégio de uma aviltada beleza, e despedem uma rara violência
na voz, como se subscrevessem a brutalidade setenta e sete vezes, um feixe
de páginas circunscritas ao esquecimento. E o que é nosso foi deixado no caminho calcinado, calemo-nos,
somos esta cruz de carne extraordinariamente violenta, semeado
o pânico entre os subúrbios os guerrilheiros avançaram até ao coração do combate,
vitoriam os velhos lugares da parcimónia e do medo. E depararam
com o perfil desconhecido do destino, como é impaciente esse discurso em que a palavra se repete, não, não, não.

(in A Noite Ismaelita, Guimarães, Pedra Formosa, 2000)

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