terça-feira, 2 de julho de 2013

Solveig von Schoultz



POEMAS DE SOLVEIG VON SCHOULTZ



DESPEDIDA

As  crianças dormiam, e o marido, quando ela partiu
secreta, descalça, como que adormecida.
Deixou a sua ternura junto ao homem para que o consolasse
com o seu aroma como uma seca convalária muda
que guarda junho no seu interior até bem dentro do outono.
E enquanto a luminosa respiração das crianças
se elevava em volta dela como brisa de trevos
depositou lentamente o seu choro junto a um,
o seu riso em outro, a sua canção em outro
e ficou ali de pé e olhava e não se atrevia a olhar
e retirou rapidamente uma curta madeixa de cabelo
e deslizou com os olhos fechados até uma porta,
até uma porta da noite, uma porta que levava para fora
onde a lua esperava, fria, clara e audaz.
Agora tinha dado até ao seu último alento.
Já não lhe restava nada mais do que o corpo
e a angústia na decisão desse corpo.
Na porta, mais além do seu passado,
olhou ao seu redor e soube o que tinha feito.

Eko av ett rop, 1945



CORAÇÃO

Dávamos-lhe centeio, não muito,
o suficiente para que não se cansasse,
dávamos-lhe água, um dedal,
para que tivesse que recordar o manancial,
abríamos a porta, ligeiramente
para que o céu lhe golpeasse o olho
e fixamos um bocado de espelho na sua gaiola
para que visse directamente a nuvem.
Imóvel permanecia com asas palpitantes.

Nattlig äng, 1949



O VALE

Ninguém te pegou na mão e disse:
aproveita.
Isto é agora.
O vale que vês com águas serpenteantes
com bosques misteriosos e ar suave
com prados e verdes mananciais
este vale tem o nome de Amor.

Ninguém disse:
vê devagar.
Tem cuidado e não caminhes demasiado depressa
nem acredites noutro vale
um maior de que tenhas ouvido falar
não há nenhum outro
não para ti
demora-te
grava cada folha na tua memória.

Ninguém disse:
isto é agora.
É muito.
É suficiente.
Completamente só atravessei o vale correndo
e até que não me dei a volta não compreendi:
esse era o seu aspecto.
Era esse.

Nätet, 1956



Velozes tacões
velozes como a oscilação da saia,
velozes olhos,
velozes anos antes que
os leves seios se façam pesados.

Terrassen, 1960



REPOUSO

Dentro da desgraça tudo é calma, todos passaram de largo,
todas as portas estão fechadas, não se ouve som algum.
Poucos móveis, sem ventilação e escuro
mas repouso,
rosto e corpo contra o duro chão
mas repouso
e um estranho sonho sobre Deus.

Sänk dott ljus, 1963



UM ESPINHO DESCONHECIDO

Um espinho desconhecido cravou-se-me no peito
e ali ficou imóvel enquanto o pássaro bebia
e eu estava imóvel
quase sem dor
enquanto o pássaro mergulhava o seu bico no sangue
e chupava com crescente intensidade
eu não sabia
se estava a esvair-me ou se a converter-me num pássaro.

Klippbok, 1968
 

SAPATOS

Estava ela sentada num tamborete
inclinada sobre os sapatos
provando-os, descartando-os
recordava e esperava
como uma mulher
com muitos amantes
estava sentada entre os seus sapatos
– aqui, os mais cómodos
usados, gastos.
Mas, adquirir uns novos?

Klippbok, 1968


CONVERSAÇÃO

Quarenta anos tinham vivido juntos
e a linguagem ia-se fazendo mais difícil de entender
no princípio tinha sabido algumas palavras
logo se foram contentando com movimentos de cabeça:
cama e comida.
Durante quarenta anos permaneceram assim na sua vida diária.
Os seus rostos foram adquirindo calma, a das pedras.

De quando em vez aparecia um intérprete ocasional:
um gato, um pôr-do-sol extraordinário
Escutavam com clarão de inquietação
tratavam de responder
                                   eram já dois mudos.

Klippbok, 1968



À TERRA

Porquê tanta pressa por chegar à terra?
Por que não por etapas?
    primeiro transformar-se em vaca
    reflexiva, ruminando
    o passado à sombra
reflectindo no olhar tudo o que passa por lá
        (como eu fiz)

   depois um gato
   com as unhas bem recolhidas
       (tal como as minhas)
   suave, com a pupila contraída
   a levar as suas crias com a boca
   logo um rato do campo
   já com o odor a terra no focinho, rápido
   já mais pequeno

   depois um verme
   cheio de terra e lento.

Klippbok, 1968



O ANJO

Na minha estante está um anjinho de madeira
com asas douradas e a auréola como um guarda-chuva.
Ofereceu-mo faz tempo
alguém que acreditava nos anjos
     então eu precisava
de um anjo da guarda (a necessidade não diminuiu).
Teve um duro trabalho.
     Perdeu
uma asa, caiu da estante
num combate com Satanás (não desconhecido por aqui)
e o dourado foi-se descascando.
     Mas a sua obstinação
é tão grande como a de Satanás, ele continua a estar
onde prometeu estar, um anjinho
com uma asa partida e uma auréola como um guarda-chuva.

De fyra flöjtspelarna, 1975



REENCONTRO

Caramba, alegria, puseram-te escondida
como antes se escondiam os loucos na sauna
tinham-te a pão e água
realmente esqueceram-te lá
onde recusavas a escuridão
– bem, agora abriu-se a porta
estás branca como o gérmen do inverno

mas, estás no umbral!

Bortom träden hörs havet, 1980


A RUA

Sempre se vê a mesma senhora na mesma rua
com o guarda-chuva aberto
sob o sol mais esplendoroso
a deslizar sob o beiral tão colada à parede
com grandes botas negras tão apressada quanto pode:
          isso do guarda-chuva
          é bem sensato
          a qualquer momento pode cair qualquer coisa:
          ditos, calúnias
          sinistra morte repentina
          ou simplesmente uns velhotes.

Bortom träden hörs havet, 1980



AS MORTES

Não o entendo
não chegarei nunca a compreende-lo:
a morte individual
a morte de muitos.
Pode-se somar a morte?
Pode o indivíduo sofrer mais mortes do que a sua?
Pode morrer nos seus tendões seus nervos seu sangue
a morte de outro?
É a morte maior porque a partilham muitas pessoas
onde cada um tem a sua?
Pode-se somar o sofrimento?
Não o entendo.
Pode alguém morrer por todos?
Pode Cristo?
Ou é simplesmente algo em que crêem

que lhes dá valentia
aos que estão nos crucifixos?

Bortom träden hörs havet, 1980


A ALEGRIA

Por fim ela tratou de deixar de agradar
a quem não fosse deus ou a morte, ambos muito distantes,
permitiu-se ser o que era
(e como ele dizia)
uma maldita velha.
Pôs-se quase bonita de alívio
mandou às ortigas o cuidado com o cabelo e a roupa
dizia o que lhe apetecia.
Os homens não eram mais do que criancinhas
que alguém tinha parido certa vez,
preocupações sobretudo, e a chupeta de consolo.

Bortom träden hörs havet, 1980



ZONA PRIVADA

Perdoar porque se esquece
acontece como na natureza
onde até o galho mais espinhoso morre
esquecer porque se perdoa
acontece no território de deus
a que poucos têm acesso.

Vattenhjulet, 1986


Versão minha - © Amadeu Baptista





Solveig Von Schoultz nasceu em Borgá, em 1907. Trabalhou como professora no Instituto de Helsínquia. Escreveu poesia e romance e está considerada como uma das melhores escritoras da geração que se segue à grande explosão do modernismo escandinavo. Faleceu em 1996




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