'A IDEIA'
O índice:
A IDEIA: revista de cultura libertária
II série-vol. 17-n.0 73-74 - Outono de 2014
Declaração
I SURREALISMO & CAFÉ GELO
Manuel de Castro - Cartas inéditas a Hélder Macedo com nota deste
Carta inédita a Carlos Loures com nota deste
Poema em catalão por Félix Cucurull
Ricardo Ventura - O espólio de Manuel de Castro
Inéditos de Manuel de Castro
António Barahona - Mágico. Manuel
Vasco - Manuel de Castro & Gelo
Luiz Pires dos Reyes - Manuel de Castro
Miguel Filipe Mochila - Quem tem medo do surrealismo
Maria Estela Guedes - Sobre Manuel de Castro - um texto de Herberto Hélder
Maria de Fátima Marinho - Vertigens do lugar
Jorge Telles de Menezes - Manuel de Castro: a Luz em viagem
António Cândido Franco - Manuel de Castro: os versos de gelo
Arthur Rimbaud - Ultimas palavras escritas
Luís Amaro - O melhor 'retrato de Mário Cesariny
António Salvado - Ao Mário Cesariny. aqui
Virgilio Martinho - Sábado Festa
Luiz Pacheco - Carta inédita a Virgílio Martinho
Manuel Silva Ramos - Visita a Luiz Pacheco
Carlos Mota de Oliveira - Montagem-homenagerm
Almerinda Pereira - Luiz Pacheco: notas sobre um pedido de pão
Sofia Santos - Luiz Pacheco: uma literatura descamada
Maurícia Teles - Luiz Pacheco
Nicolau Saião - Como o outro que diz
Pedro Oom - Carta a Nicolau Saião com notas deste
Três poemas
Alfredo Margarido - Um semi-inédito de 1957
Surrealismo negro
Paulo Jorge Brito e Abreu - Bon sauvage
Fernando Botto Semedo - Mário Cesariny — a casa da poesia
Laurens Vancrevel - Walking down the streets with Mário Cesariny
Carla Ferreira de Castro - Passeando nas ruas com Mário Cesariny
António Cândido Franco - O renque tão decisivo do mar e do céu marinho
Entrevista a Isabel Meyrelles
Arnost Budik - Carta inédita a Cruzeiro Seixas
Manuel Neto dos Santos - Homenagem a Cruzeiro Seixas
Raul Leal - Carta inédita a Almada Negreiros [trecho] anotada por Manuela Parreira da Silva
Ruy Ventura - Dois testemunhos de Manuel D Assumpção
Manuel de Castro entrevista D'Assumpção
D'Assumpção - Carta inédita a João de Vasconcelos anotada por Ruy Ventura
António José Queiroz - O Pintor
Manuel Hermínio Monteiro - Pascoaes de avião
A morte não existe
Teixeira de Pascoaes - Carta inédita a Albert Vigoleis Thelen
João Mendes de Sousa - No Gancho de António Nunes da Rocha
Gancharia
Angelo Lima
Manuel Villaverde Cabral - Radicalidade estética, radicalidade política
Luiz Pires dos Reyes - Henrique Tavares
Amadeu Baptista - Viagem nocturna
Manuel Sitva- Terra De gelo
Maria Estácio Marques - Mário Cesariny — Natália Correia
João Carlos Raposo Nunes - Manuel de Castro - 1973
Fernando Grade - Manuel de Castro & Companhia
António C. Franco O Gelo — do princípio ao fim
Entrevista a Carlos Loures
Hélder Macedo - Poema
CRONOLOGIA
II BRASILINA
Benjamin Péret - Uma arte sem rosto
Sérgio Lima - Mélusine bleue-nuit
Alex Januário - Transmissões
Grupo DeCollage - Cronologia
Cláudio Willer - Séries
Floriano Martins - Visões da névoa: surrealismo & Brasil
Lucila Nogueira - Espelho veneziano
Angelo Monteiro - Sem disfarces
António C. Franco - Brasílica de Benjamin Pérel
Entrevista a Pietro Ferruam
DOCUMENTA
Agostinho da Silva - Sobre um livro de António Telmo
Nuno Júdice - Lírica, narrativa, poesia
Antonio Saez Delgado - Paísaje
António Telmo - Fragmento dum livro inédito
Pedro Martins - Para urna kabbalah pós-atlântica
Fiama Hasse Pais Brandão - Cartas inéditas a António Telmo comentadas por António Carlos Carvalho
Paulo Borges - Mãe, Irmã e Amante nossa
José Rui Teixeira - Poema
Nuno Mangas Viegas - Semente-boca
Valter Nogueira - Três poemas
José Emílio-Nelson Aflição e Cinza
Paulo Jorge Brito e Abreu - Soneto à guisa de Bocage
Alexandre Vargas - "Boa noite, senhor Fernando Pessoa"
IV LEITURAS & NOTAS
Luís Amaro - Lembranças avulsas de Gonçalves Correia e seu filho Ferrer
Gonçalves Correia - Brito Camacho
José Hipólito Santos - Um militante libertário: Moises Silva Ramos
João Freire - Paul Goodman
Joaquim Palminha Silva - Novos instrumentos de manipulação e tortura
José Maria Carvalho Ferreira - Maria Conceição Magos Jorge
Paulo Guimarães - Nota sobre "Negras Tormentas", Alexandre Sarmis
Carlos Júlio - Portal Anarquista
Jorge M, Colaço - Publicações independentes
Laurens Vancrevél - Le rniroir noir de la poésie surréaliste
Miguel Perez Corrales - Philip Lamantia
Jorge Leandro Rosa - Para um povoamento da vida poética: Gary Snyder
Carla Ferreira de Castro - A irmandade Pré-Rafaelita
Miguel de Carvalho - Allan Graubard e o surrealismo hoje
Manuel Parreira da Silva - "Aviso a tempo por causa do tempo", António Maria Lisboa
Fátima Sousa - Uma cartilha de remos e rimas?
Cristina Dias - A revolução poética de Natália Correia
António Gonçalves - Memória de luz e silêncio [Henrique Risques Pereira]
Rui Sousa - Recordações do "Congresso Surrealismo (s) em Portugal"
Sofia Carvalho - Triénio pascoalino
Arquivo & Registo
Novos Colaboradores
Deixo aqui o poema com que colaborei nesta edição:
VIAGEM NOCTURNA
estrangeiro
em lisboa, venho aqui para descobrir
bach nas
avenidas novas e algumas mulheres sentadas
nas
escadinhas do duque. esta é uma cidade odiosa, de tão branca
que é – e
suja, sempre a lembrar-me do que devo esquecer
neste rio
sem naus, mas cafres insuperáveis. o certo
é que
durmo na travessa dos fiéis de deus com frio e agastado pelos ruídos
da praça,
enquanto tu, camões, pareces impassível à arruaça
e na tua
sereníssima imanência nem dás pela promiscuidade citadina.
odeio,
abomino esta gente que não me olha nos olhos, e tem, abertamente, um linguajar
de
réptil, sem matriz, catedral, solenidade: anda na rua como se fosse cega
e acresce
ao desvario um esbulho de luz incoincidente com a minha intratável entoação
nortenha, que, talvez, ao antónio barahona não destoe, já que pede por nós em grego,
e
aramaico, e árabe, sem que, apesar disso, muito se compraza. lisboa a estas
horas
nem sabe
o que é a chuva, a água, o tejo – ocupada nas compras
e sem
novas de ulisses, ou das barcas, vibra de cheiros maus pelas vielas,
que o
fado, de alguidar e faca, mais arrevesa do que sabe aproveitar.
como
viver aqui me é desconcerto e acirra a vontade de morrer: vejo este pessoa
de bronze
à porta dos cafés, a ser contaminado por uma freguesia tão absoluta
e
primitiva que lembra o estado novo que vomito, vomito como um corvo.
se por
este caudal viesse, ao menos, o cesário, talvez transfigurasse a aversão
em poema
e o sarcasmo alinhasse na rua do trombeta algum montante de ternura avulsa. mas
não. eu até em telheiras não estou bem, esse lugar de múltiplos desgostos, onde
perdi, além do amor, um cão, um cão quase redentor. ah, lisboa: hoje, às três e
meia, vai pelo mundo uma promessa de orgasmos pela paz universal, mas de ti
nada se espera,
alheada
que estás das coisas transcendentes, com a cauda entre as pernas e o olhar
sem
vislumbrar o horizonte, onde uma virgem seminua de novo dançaria para ti,
se
merecesses, ou a chulice encartada não prevalecesse. tivesses tu coragem
e ias a
s. bento queimar o molho aos torvos que, para seu governo, nos andam a tramar,
ou viravas
a mesa, ou partias a louça, desterro nosso sem qualquer desterro.
serias,
por uma vez, implacável, a fazer corpo com o futuro, em nome do que vale,
sem
misérias ocultas e esperança justa. mas não. tu só te agastas pelo que é
inútil,
com
poesia melíflua do quotidiano e centros comerciais a liquidar enigmas
estúpidos. olha as pontes, lisboa. olha, lisboa, os teus subúrbios. há mais
beleza na pedreira
dos
húngaros, ou nas arribas de cacilhas, que tudo em volta do castelo,
salvando-se, talvez, pelo sortilégio, são domingos e as paredes calcinadas
pelos incêndios
perseverantes,
e onde eu, às vezes, vou, não para falar com deus, que não existe,
mas para
apreender um pouco mais de bach, na parte que lá mora,
e ver, ao
alcance da mão, outras mulheres sentadas, sempre à espera de um algum milagre
avulso, algum ligeiro terramoto que as estremeça. é pena que o bocage, lisboa,
cá não
esteja: cansado da bicheza, por certo encorajava diogo alves a regressar
do
enforcamento para dar continuidade às obras de limpeza a que deu início
com a
quadrilha, ali para o aqueduto, para acabar de vez com a cidade branca,
deserta,
a matar
os távoras que pode, ou quem resiste à ignomínia de estar à mercê de gente
medíocre. pergunto pelo almada e venho vê-lo a alcântara, ao cais de embarque,
à margem
de belém e os seus pastéis, de nata e presidência: apaziguam-me mais
estes
painéis, de alvoroçada partida e descoberta, que uma ida à gulbenkian,
ou ao
príncipe real, se bem que nos seus jardins a noite se suspenda
e um
sortilégio vele, entre os ligustros, a noite imensa.
mas o
almada não era de lisboa, tal como não era o botto,
(ou o
herberto, a natália: gente de ilha/ gente de quilha, digo eu,
que
também fui concebido numa ilha do porto, e se quisesse não, ah, não
enlouquecia),
tal como não são de lisboa os habitantes de lisboa,
ou nós,
artistas desta hora, que, não sendo de alguma parte, vamos da graça a alfama
com o
coração apertado, num vinte e oito que nunca tem destino.
ah, que
desgraça não sermos de saturno, que desgraça a nossa transcendência não ir além
da gare do oriente e ter de estar sujeita a um restelo de velhos e furores
adolescentes, sem génio nem remoque, mas sempre, e só, tormenta.
é que de
adolescentes nem é bom falar: à luz do lampião, eu vejo-os pelos bares a cair
de
bêbados, sem mãe que lhes acuda, ou tirocínio, que o mais que sabem
é exctasy e shoots, assim, em inglês, já que ler e escrever na língua de que
são
lhes passa
a milhas, no caso americanas: as jeans
puídas e os cabelos soltos,
que não
vêem sabão vai para semanas, a beneficiar, sem que o suspeitem,
o
neo-liberalismo, são o sem sentido de uma rebelião
sem
turbulência, manada para abate um dia destes. e quanto a velhos,
estamos
conversados: a vetustez de oitocentos anos, nem para os sapatos mija,
ou
desfeiteia viúvas, de pátria ou sordidez. ah, lisboa, nem o putedo infrene
dos teus
becos é valia que baste. eu, que não sou cliente, atrevo-me a dizer
que não
há puta mais repugnante que a puta de lisboa, sendo lisboa
a puta
desgrenhada que se vê, que nem um bom mergulho purgaria
ou, ainda
que por empréstimo, poria algum feitiço langue, ou dengue, ou o que fosse.
mulher sentada que valha em lisboa é, tal como eu, estranha a estas paragens:
falo de
uma eslava que conheço, que é bela como a planície alentejana, assim como são
belas as cabo-verdianas que se sentam na relva para que o esplendor coaja –
coaja
e ponha
em marcha – a indizível matéria do
desejo. um poeta cai no seu campo electromagnético e é como se entrasse no mar
ou no regaço de um sonho onde a canela, a mandrágora e o rábano picante se
reunissem para um manjar de deuses, irrecusável. detestável lisboa, que posso
mais dizer para contrariar-te, mesmo a pagar imposto,
com e sem
valor acrescentado, além da derrama? desde que o fialho de almeida
se foi
que os teus gatos, lisboa, são ramelas andantes, a comer do próprio vomitado,
sem
miados à lua e cenas langorosas nos telhados, a incentivar amantes. há, é
claro,
as coisas
do botelho, onde tu, lisboa, talvez não por acaso, apareces vazia no retrato,
sem
notícia do ajuste de contas necessário com os cobradores de impostos, as
raparigas de cabeça oca, os rapazinhos lúbricos dos ginásios que se enfeitam
para os rapazinhos lúbricos dos ginásios, as matronas do chá, que enfermiços
canídeos arrastam pela trela,
os homens
de negócios, cinzentos, como sempre, a traficar crianças e assassínios,
e os
cônsules, os tribunos, os pretores, e até os sem-abrigo, que dormem
nos
portais e perderam, entre tudo o que há para perder, a clareira após o
abandono.
há, é
claro, esse secreto adeus do baptista-bastos, a enredar real na realidade
e a
viajar por uma deriva ignóbil, nas ruas da amargura, a fazer do obsceno obra
acabada, como só pode ser o que é do homem. há, é claro, o gomes leal, o
o’neill,
ou o
cardoso pires, com anjos escarlates a tremeluzir nos céus, por pura limpidez
de sensualidade
e ancoragem terna. mas tu, lisboa, não podes entender a aristocracia
que há no
povo, não podes crer no poder da arraia-miúda proto-contemporânea,
nem
mereces o vítor silva tavares, a congraçar a emenda e o soneto, sem mais
tristeza possível que a dos barcos que
passam ao largo do cais das colunas,
enquanto
o café gelo não tem outro destino do que deixar de ser a sede radical
da
carbonária para se transformar em nova decadência de lambris escuros,
sem mário
cesariny e sem luís pacheco, sem vergílio martinho ou ernesto sampaio,
sem
antónio josé forte ou manuel de castro. melhor fora, lisboa, que fosses moura,
ainda, e que às trindades se não ouvissem sinos, mas o sumptuoso grito do
almuadem. ouvindo o chamamento, sabendo que a cotovia convocava à oração, ias,
por fim,
lavar-te.
e, assim, lisboa, talvez fosses o brilho verdadeiro de que brilhas
ao sol,
como uma ave – muita branca por fora,
muito negra, por dentro.
© do poema Amadeu Baptista
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