Deixo três poemas do livro:
Vi as velhas no hospital Santos
Silva a temer
a intervenção cirúrgica com os
terços presos
às tessituras finas das camisas de
noite.
Vi os velhos estóicos, com as mãos
nodosas
sobre os lençóis gastos e a
imobilidade nos braços
para que os seus corações não
aluíssem.
Vi as mulheres ainda novas a gemer
nas camas
por puro terror, e uns quantos
rapazes
atrás de biombos, não menos aterrados.
Vi as agulhas dos gráficos a
oscilar
e os médicos a medir palpitações
adversas.
Vi os boletins clínicos, as
lágrimas convulsas,
os comprimidos às cores que eram
prescritos
sob a vaporosa leveza que os mortos
tecem.
Estive a preparar o fim desde o
princípio,
a ânfora a encher-se com dores
surdas
enquanto a permanência se ampliava
na extensão da praia da infância
onde, uma a uma, as estrelas se
extinguiam
e os mortos paravam nas escadas
por que tinham subido, carregados
de algas, pez e maresia. Neste
lençol
deponho as suas feridas, a saber
como são meus os seus gemidos,
as altercações que tiveram com a
vida,
os equívocos que os assassinaram
por uma fracção de luz, uma dúvida,
um longínquo rumor intransponível.
O que sobra dos mortos são as pernas
com que calcorrearam as ruas da
cidade,
esses pés que não precisam de
sapatos.
O que sobra dos mortos são as mãos
com que prenderam entre os dedos
uma carícia, uns cabelos, um par de
asas.
O que sobra dos mortos são as bocas
fechadas, que já não podem dizer o
que o sossego
lhes havia para sempre interditado.
O que sobra dos mortos são as
sombras
que agora os acompanham quando
tocam
outras sombras perdidas nos
espaços.
O que sobra dos mortos são as
mágoas
por nunca mais poderem desejar.
(in Vida Breve, Fafe, Labirinto, 2014)
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