quarta-feira, 24 de outubro de 2012

João Ricardo Lopes


João Ricardo Lopes, poeta convidado




DO SILÊNCIO

1. AMENDOEIRA EM FLOR

a luz desta árvore entra na sala de aula e com ela entra van Gogh.
a perfeição dos ramos e das folhas rosadas não impressiona o homem comum
mas ergue ao velho lavrador o olhar abismado como se a ele também 
fosse partilhado o dom da LEITURA

aos pequenos falantes da língua ensino eu a gramática das frases e dos sentidos
mas é em van Gogh e no velho lavrador que incide o clarão alado desta manhã.
é na natureza que subtis e perfeitas regras de regência amplificam 
o corpo aberto e baloiçante do poema

como van Gogh, como o mestre humilde da terra, sou escravo desta luz 
que atordoa e depura, não apenas o vidro da janela, mas a concreta vida 
dos minutos, do saber que professo, das lições que fecundarão (quem sabe) 
outras vozes, outros ecos deste prodígio amado e quase invisível







2. SILÊNCIO DE ARRECADAÇÃO

dai-me senhor a grande paz
da sala dos arrumos, dos armários 
de arquivo, dos caixotes selados e
proibidos de abrir, o grande silêncio 
da penumbra e placares vazios 
de cortiça, o amor da sombra e
fita-cola adesiva, dos objetos caídos
no seu próprio sono de arrecadação.
sob a pionés palavra nenhuma
debaixo da janela a ausência de rumor.
dentro de mim apenas isto:

FRÁGIL. NÃO MEXER!







3. PELAS FRINCHAS DA GARAGEM

pelas frinchas da garagem 
entram os dedos da lua

depois é um eco de velhas sucatas 
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco
coisas dispersas despejadas pelo
tempo na superfície da pele

sem nome é o cheiro do 
silêncio, como o rosto que nos
pertencia e hoje não passa de
gelo, talhado a esmo
nas frestas da memória





Fotos (ilustração dos poemas) Luxemburgo: © de Amadeu Baptista

Poemas: © João Ricardo Lopes

João Ricardo Lopes (n. 1977) é pós-graduado em Teoria da Literatura, tendo sido bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1995 e 1999. Leciona a disciplina de Língua Portuguesa no ensino básico e secundário, tendo publicado cinco livros de poesia e um de crónicas. Leitor ávido de poesia das mais diversas proveniências no mundo, viu alguns dos seus poemas serem traduzidos para inglês, francês, servo-croata e castelhano. É autor do blog DIAS DESIGUAIS, em www.diasdesiguais.blogspot.com.

Sem comentários:

Enviar um comentário