João Ricardo Lopes, poeta convidado
DO SILÊNCIO
1. AMENDOEIRA EM FLOR
a luz desta árvore entra na sala de aula e com ela entra van Gogh.
a perfeição dos ramos e das folhas rosadas não impressiona o homem comum
mas ergue ao velho lavrador o olhar abismado como se a ele também
fosse partilhado o dom da LEITURA
aos pequenos falantes da língua ensino eu a gramática das frases e dos sentidos
mas é em van Gogh e no velho lavrador que incide o clarão alado desta manhã.
é na natureza que subtis e perfeitas regras de regência amplificam
o corpo aberto e baloiçante do poema
como van Gogh, como o mestre humilde da terra, sou escravo desta luz
que atordoa e depura, não apenas o vidro da janela, mas a concreta vida
dos minutos, do saber que professo, das lições que fecundarão (quem sabe)
outras vozes, outros ecos deste prodígio amado e quase invisível
2. SILÊNCIO DE ARRECADAÇÃO
dai-me senhor a grande paz
da sala dos arrumos, dos armários
de arquivo, dos caixotes selados e
proibidos de abrir, o grande silêncio
da penumbra e placares vazios
de cortiça, o amor da sombra e
fita-cola adesiva, dos objetos caídos
no seu próprio sono de arrecadação.
sob a pionés palavra nenhuma
debaixo da janela a ausência de rumor.
dentro de mim apenas isto:
FRÁGIL. NÃO MEXER!
3. PELAS FRINCHAS DA GARAGEM
pelas frinchas da garagem
entram os dedos da lua
depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco
coisas dispersas despejadas pelo
tempo na superfície da pele
sem nome é o cheiro do
silêncio, como o rosto que nos
pertencia e hoje não passa de
gelo, talhado a esmo
nas frestas da memória
Fotos (ilustração dos poemas) Luxemburgo: © de Amadeu Baptista
Poemas: © João Ricardo Lopes
João Ricardo Lopes (n. 1977) é pós-graduado em Teoria da Literatura, tendo sido bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1995 e 1999. Leciona a disciplina de Língua Portuguesa no ensino básico e secundário, tendo publicado cinco livros de poesia e um de crónicas. Leitor ávido de poesia das mais diversas proveniências no mundo, viu alguns dos seus poemas serem traduzidos para inglês, francês, servo-croata e castelhano. É autor do blog DIAS DESIGUAIS, em www.diasdesiguais.blogspot.com.
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