Poemas de Gyrdir Eliasson
SONHO
Muito dentro dos olhos
uma estranha película
projecta-se
em cada noite
sobre uma tela azul escuro
o realizador dorme
na fila treze
só
na sala alcatifada a vermelho
é
a última oportunidade
só restam
umas poucas sessões
muito dentro dos olhos.
Svarthvít axlabönd, 1983
OLHO POR OLHO DE CRISTAL
Está claro esta manhã
quando acordo que algum
diabo anda solto
desapareceu a fileira de casas em frente
eu esfrego os olhos abano a cabeça
volto a abri-los mas tudo é
inútil
essas quase quarenta casas (pelas noites
vi muitas vezes um reflexo azulado escapar
pelas janelas das salas)
desaparecidas o aparcamento também
nem marca da mínima edificação de algum
tipo (e agora por fim vê-se outra vez
a montanha daqui após ter estado dez anos
escondida) contenho-me com dificuldade
para não me arrancar os cabelos o meu apartamento
dança perante o meu olhar
o suor salta a água fria
corre apresso-me a ir ao espelho
e fixo as suspeitas.
Bakvid maríuglerid, 1985
PONTOS DE SUTURA
Agora já não há quem o salve
disse a si mesmo quando
saiu à varanda e viu que
o sol se dessangrava pela convexidade
do mar que ia dar às ilhas compreendeu
também que mais tarde ou mais cedo teria
que reconhecer a redondez da terra.
puxou de uma navalhita com brancas incrustações de concha
e começou a limpar as unhas com
movimentos lentíssimos que recordavam
o que contam das antigas cerimónias rituais
dos incas. logo voltou a levantar os olhos.
sorriu friamente e cravou a navalha
rapidamente na jugular.
Bakvid maríuglerid, 1985
COMPAIXÃO
Caminho
pelo páramo
através da treva
e visões
aladas voam à minha
volta.
Vou
pela mar
através da treva
e as aves nocturnas
pousam no meu
barco.
Não estou
nunca
completamente só.
Tvö tungl, 1989
ESPELHO
Muitas vezes saio da minha
casa ao entardecer e
vagueio por becos de cimento sob
os olhos amarelos dos faróis e
estou às vezes
deprimido sem saber
por quê mas suspeito
que outro mundo ainda mais
sombrio está pegado
a esta abóbada celeste que a noite
contempla.
Tvö tungl, 1989
CRIATURAS DE LUZ
O bolbo da minha lâmpada
é habitado por gente que
tem ventosas nos pés
e sobe pelo vidro delgadíssimo
por dentro e dorme em redes
de molas tensas no topo da lâmpada
e quando a apago
à noite ouço os débeis
roncos do casquilho.
E então volta a acendê-la
às vezes.
Tvö tungl, 1989
PENSAMENTOS NOCTURNOS ORIENTAIS
Na minha varanda
há uma estranha lanterna
que lembra imagens
da antiga China
ou de um farol na escura
praia do pensamento.
É para tê-la
acesa na escuridão
das noites tranquilas
esquadrinhando o vaso
sob a luz.
E pensar na morte
e pensar na vida.
Vetraráform um sumarferdalag, 1991
SOLILÓQUIO
Sempre
desejei
chegar a uma ilha
muito pequena que se
visse que é uma ilha e é fácil
de percorrer
numa hora com
sol ou com chuva
e ver os pássaros
batendo as asas na
sua solidão.
E adormecer logo
ali na praia
e chegar a ter deste modo
asas
e amigos.
Mold í Skuggadal, 1992
PÁSSARO CEGO / VOO NEGRO
Tranquilidade não posso dar
posto que não a tenho
a autonomia de voo
de ideias inquietantes parece
inesgotável, ascendem pela abóbada e flutuam noite
após noite como que dotadas de asas entre
as colunas, deitado as sigo
através do vidro, pouco falta
para que pousem um instante
nas paredes adesivas.
Estranhamente frágil esse
rápido fitar de olhos,
como se num ovo tivessem pintado
manchas negras.
Nada interrompe o silêncio excepto
o gotejar das caleiras, a apagada
luz da rua ziguezagueia através
do desenho irregular das cortinas, estou
só à mesa, chá numa chávena
de porcelana japonesa, volto a pensar nos
olhos, como explodem.
É a hora das vassouras de palha e as corujas
estendem as suas asas manchadas
junto aos morcegos.
Os telhados de cobre das torres reluzem sob o débil
brilho do grande farol de gás
aqui sou um estranho, dou uns poucos
vacilantes passos calculados pela
praça das pombas como se temesse
que houvesse minas ou armadilhas
colocadas para caçar cornúpetos.
Blidfugl/Svartflug, 1986
f
O chá está frio e
acabam de apagar o televisor
(reportagem sobre a páscoa em israel)
quando um cogumelo brilhante enche a janela
o rectângulo de paisagem cai ao mesmo tempo da
parede um instante detêm-se escutam atiram-se
ao chão amontoam-se no puído tapete
voltam a fechar os olhos
recordas
o forno
de
e chorou
ai grita
ela
queres
dizer
as parcas
balbucia
ele engolindo ar ardente e afogando-se…
Einskonar höfudlausn, 1986
pp
Cadeira jaqueta branca rosa espelho
parede rugosa quadro moldura dourada
chão de ladrilhos cama sem colcha
baú lata azul pálido e um forno
frio e deslustrado fecham os olhos
ante a chegada da sombra do
chilreio tranquilo e a voz cinzenta
de um gravador da mesma cor.
Einskonar höfudlausn, 1986
MUITO LONGE
Lá durmo
envolto num sonho
de lagoas e montanhas
e maçãs em cestas
e menino a comer maçãs
ao sol nas ilhas
cinzentas azuladas que surgem do mar
longe da costa (distantes
três horas de navegação).
Mas os olhos estão abertos
eu olho e estou
completamente imóvel e o vale
respira na névoa
fora da janela
esta noite de verão.
Vetraráform um sumarferdalag, 1991
DIARIAMENTE
Diante da minha casa arrastam-se
diariamente milhares e milhares
de insectos mecânicos diariamente no meio
de um tempo criminal ou de uma bonança inolvidável
e de todas as fases intermédias ronroneiam à guisa
de despedida e desaparecem não
sei onde mas se alguém fixa
o tempo suficiente os rectangulares
olhos das casas vê que
as colinas banhadas de sol do outro lado da ponte
sobre a enseada cobrem-se de escuras manchas
à medida que passa o tempo
nunca estive lá
(o plano detalhado do sector
não revela exactamente nada)
onde mastins altíssimos de aço se espreguiçam
escalando o céu azul pálido nos
intervalos e quando a escuridão domina
recolho-me na minha dura concha
e não respondo ao telefone.
Bakvid maríuglerid, 1987
A QUEDA DO MACHADO (FRAGMENTO)
O machado está surpreendentemente pouco ensanguentado
a cabeça caiu na
cesta de vime e jaz sem
que se lhe vejam os olhos.
a multidão como um véu cinzento
na praça um véu cinzento que
se agita com brisa dominical
mas não deixa passar o sol ao
seu través.
Alto!
grita o realizador saltando
da cadeira. Magnífico!
Puxo de um lenço
e enxuga o rosto
satisfeito. Bem, levai o
cadáver! Deita um olhar
rápido ao cenário
repleto de câmaras. Tenta
esquecer o zumbido contínuo nos
seus ouvidos e volta
a pensar contrariado
no director da prisão…
Bakvid maríuglerid, 1987
PARADOXOS IRREGULARES
O asfalto como uma fita negra
no deserto limitado
a hora aproxima-se vacilante
pára-raios torcidos abrem
os seus inumeráveis olhos carregados de sonho
o instante
congela tudo está entumecido já começam as casas
a desmoronar em silêncio as geladas mãos do vento
deslizam por entre os montões de pó que ficam
como uma jugular que se estreita perante o sinal de perigo
alarga-se a rua numa delgadíssima listra
as pontas da relva cobrem-se de sujidade cinzenta
de uma antiga passagem entre as casas sai um homem
correndo sem cabeça mas sem sangrar
(visto devagar em primeiro plano transforma-se numa
cruz depreciada ou num pilar de lojista em que
a tempestade tivesse emaranhado as roupas sobre umas pegadas
imediatamente cobertas pela areia persegue-o um
exército de térmitas que chegam de todas as direcções)
o entardecer moldou-se entre os barrotes
de ferro até à esbotenada jarra de flores e bebe
nela eu não me fixo em nada recordo outros momentos
sob um sol maior que a lâmpada de quarenta
vátios da minha cabeceira.
Bakvid maríuglerid, 1987
PERFIL DE UM MANÍACO
Descartei
o cinema
porque temo que precisamente
durante uma cena lenta e prolongada (dois
tipos sujos um careca
com uma cabeça que lembra as velhas
máquinas fotográficas carrega uma maleta e um anel
de ouro num dedo que arranca do corrimão
da escada de que sobe um som metálico)
me atire à rede impoluta
dos meus pensamentos o louco
do assento detrás
sacando
um fio sibilante de aço…
Bakvid maríuglerid, 1987
Versão minha - © Amadeu Baptista
Gyrdir Eliasson, nasceu em 1962. Os seus poemas, íntimos e ricos em imagens, falam sobretudo da solidão, a sensibilidade, o perigo da destruição, com referências aterradoras chegadas da comunicação social e da cultura do ócio dos nossos dias. Publicou mais de um dezena de livros de poesia, além de romances e contos. A sua prosa caracteriza-se pela sua força expressiva, semelhante à da poesia.
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