terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Egito Gonçalves


Um poema de Egito Gonçalves



Notícias do Bloqueio

 
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
 
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.
 
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
 
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...
 
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
 
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
 
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
 
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
 
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se


(in O Pêndulo Afectivo - Antologia Poética, 1950-1990, Porto, Afrontamento, 1991)




Egito Gonçalves nasceu em 1922, em Matosinhos, e faleceu, no Porto, a 29 de Janeiro de 2001. Começou a publicar os seus livros de poesia no início da década de 50. O seu nome aparece-nos ligado, a partir dessa altura, a algumas revistas de poesia que fundou e/ou dirigiu: A Serpente (1951), Árvore (1952), Notícias do Bloqueio (1957). Poeta e tradutor, Egito Gonçalves desempenhou ao longo da sua vida um grande papel na animação literária e cultural do Porto, a cidade onde viveu. Foi um dos fundadores do TEP – Teatro Experimental do Porto. Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Em 1995 foi galardoado com o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritor, com o livro E No entanto Move-se.  Da sua longa obra, destacam-se os seguintes títulos: Um Homem na Neblina (1950); A Viagem com o Teu Rosto (1958); Os Arquivos do Silêncio (1963);Falo da Vertigem (1993); E no Entanto Move-se (1995); O Mapa do Tesouro (1998); A Ferida Amável (2000).

Sem comentários:

Enviar um comentário