terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Hans Børli



POEMAS DE HANS BØRLI



AÇO

Este arado
é made in Germany.
Aqui está coberto de orvalho
fresco e agradável ao toque
como a madeixa de uma mulher adormecida.

Se o destino o tivesse querido
o aço deste arado
teria ido parar às fábricas da Krupp em Essen.
Então talvez
– fundido como morteiro –
tivesse arado em carne quente.

Agora repousa a terra
arada na tarde primaveril.
E gorjeia a alvéola
bicando vermes entre os sulcos.

E o arado está aqui
enlameado e cândido.
Sabe o que sussurrou a terra
ao acariciar a relha.
Mas não sabe nada
sobre Cherbourg,
Velikie-Luki
nem El-Alamein.

Villfugl, 1947


ERIÓFORO NO PÃNTANO DE LOMTJEN

Se eu, por absurdo que pareça,
me fizesse santo
e entrasse nas moradas dos bem-aventurados,
então diria ao arcanjo:
– Eu vi algo
que é mais branco do que as tuas asas, Gabriel!

Vi florescer o erióforo
nos pântanos de Lomtjen

aqui na minha terra.

Jag vile fange en fufl, 1960


LOUIS ARMSTRONG

Velho, doce Satchmo –
rosto com marcas de rodas na planície,
como terra e fosforescência marinha.
Feridas nos lábios.
Sangue na boquilha de latão. Sempre
ruge a tempestade de sol
na gretada árvore dos teus pulmões. Sempre
foge um corvo com as asas de pomba
da tua garganta esgotada de cantar.

Nobody knows…

Vês todas essas mãos brancas, Satchmo?
Aplaudem.
Mãos que bateram, mãos que enforcaram, mãos
que dividiram uma doce e crescente escuridão
com a cruz em chamas do ódio.
Agora aplaudem.
E tu tocas, velho. Cantas
o Lullaby do Uncle Satchmo. O suor escorre, o peito
arfa. Há um sol cravado
na resplandecente boca da trompete.
Como o pranto numa garganta.

… the trouble I’ve seen

Como me fez envergonhar-me o teu sorriso cheio de cicatrizes
do meu próprio rosto fechado,
da minha genuflexão perante as sombras. Pergunto-te:
De onde tiras a força para
a tua rebelião sem ódio? O teu
resplandecente tom de luz que
ilumina a noite dos negros? Responde-me
como há-de ser a dor maior…
como há-de ser a dor maior
para alimentar uma alegria pura?

E a trompete responde
da distância,
um fumo de prata:
Mississípi.

Ved bälet, 1962


GETSÊMANI

Percorria um triste zumbido
de pena o monte Getsêmani naquela noite…
a noite em que os soldados levaram o filho de Maria
à casa do sumo-sacerdote?
Não,
um pastor de burros que levava os seus animais
pela porta de Shusan à hora terceira,
ouviu o sussurro de um profundo suspiro
de paz no olival.
E no pequeno buraco que os joelhos do Mestre
cavaram na terra macia,
caminhava um escaravelho
com uma carapaça como que de cobre antigo,
com as palpitantes antenas em tensão
para uma fragrância de hibisco.

Uma flauta de pastor no alto da colina
soava solitária e longínqua.

Ved bälet, 1962


ALTAMIRA – OU O MONÓLOGO DO PINTOR RUPESTRE

As planícies são tão imensas,
a gruta tão estreita. A angústia
trespassa como fumo a mente, o coração de estalactite
da morte solta o seu tic-tac nas trevas.
    Quero fixar
o instante perdido da vida numa linha
gravada na pedra das paredes da gruta: um bisonte
com os cornos voltados para o destino,
    um jovem veado
que na madrugada seguiu a sua fêmea, mas agora
é um monte de ossos corroídos e embranquecidos
em torno de uma fogueira de caçadores.
    Quero pintar
com ocre, fuligem e sangue, pintar
a vida que brincava
como uma corçazinha pelas ventosas planícies
antes de se converter em comida, antes que
a beleza se afogasse em estômagos sem fundo.

Venta do norte. Ressoa
em gelos crescentes. Mas os homens estão em festa.
Satisfeitos sorrisos untados de gordura brilham no resplendor
do fogo assobia em volta de pesados espetos,
    as mulheres gritam
com vestígios de sangue dos dedos dos caçadores
sobre os peitos e os músculos – longe, sob a lua
os lobos anunciam o inverno.
    Quero pintar
com ocre, fuligem e sangue, pintar
a corçazinha que morreu a dançar
e morre diariamente
com uma desapiedada pedreneira no coração.

Hver liten, 1964


A FUGA É IMPOSSÍVEL

A fuga é impossível.
Tu és o teu próprio prisioneiro.
Através das portas do corpo só saem
gritos e lágrimas,
mucos e merda.
E sémen,
como uma via láctea de angústia
no universo da morte.

Isfuglen, 1970


ENTREGA A TUA ALMA

Entrega a tua alma ao vento,
deixa que os teus cavalos de trabalho pastem
na terra sem arar
enquanto as aves do céu recolhem
as tuas valiosas sementes. Então
talvez ocorra que
o Poema brote na tua vida
como espinhosas e vermelhas
flores de cardo.

Dagen er et brev, 1981


A MÃO DE DEUS

A minha pequena vida recôndita:
Uma chama de fósforo
que arde assustada
no oco da mão de Deus
durante as ventosas noites do mundo.

Sim, no assustado resplendor de mim mesmo
vi a palma da
mão de Deus.
Era dura e tosca,
gasta
como a mão de um colono
que uma tarde no seu campo
esmaga um grão de cevada para ver
se o miolo é bom.

Frosne tranebœr, 1984


Versão minha - © Amadeu Baptista



Hans Børli (1918-1989) nasceu em Eidskog. Trabalhou como lenhador a maior parte da sua vida. Estreou-se em 1945 e, um ano depois, publicou o romance Han som valte skogen (O que elegeu o bosque).

1 comentário:

  1. Bom dia, estimado poeta Amadeu Baptista
    Excelente recolha de poemas de Hans Borli. A tradução está perfeita. Vivi os poemas intensamente.
    Ainda não tive oportunidade de "seguir" o seu blogue e assim, como tenho mais disponibilidade, faço-o agora.
    Os meus melhores cumprimentos,
    João Soares

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