sábado, 10 de novembro de 2012

António Nobre


LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO

1

............................................ Só!

Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó.
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês de Abril!
Que triste foi o seu fado!
Antes fosse pra soldado,
Antes fosse pró Brasil...

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite,
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que São Lourenço fazia andar...
Formosas cabras, ainda pequeninas,
E loiras vacas de maternas ancas
Que me davam o leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhas brancas;
Meus bibes eram de sua lã.

António era o pastor desse rebanho:
Com elas ia para os Montes, a pastar,
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto delas era o meu jantar...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia
Naquela doce companhia.
Eram minhas Irmãs e todas puras
E só lhes minguava a fala
Pra serem perfeitas criaturas...
E quando na Igreja das Alvas Saudades
Que era da minha Torre a freguesia)
Batiam as Trindades,
Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me,
Eu persignava-me, rezava «Ave-Maria...»
E as doces ovelhinhas imitavam-me.

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite...
Um dia, os castelos caíram do Ar!

As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
As velas do moinho... mas rotas e velhas!

Que triste fado!
Antes fosse aleijadinho,
Antes doido, antes cego...

Ai do Lusíada, coitado!

Veio da terra, mailo seu moinho:
Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,
Hoje, fazem-no andar águas do Sena.,.
É negra a sua farinha!
Orai por ele! tende pena!
Pobre Moleiro da Saudade...

Ó minha
Terra encantada, cheia de sol,
Ó campanário, ó Luas-Cheias,
Lavadeira que lava o lençol,
Ermidas, sinos das aldeias,
O ceifeira que segas cantando
O moleiro das estradas,
Carros de bois, chiando,..
Flores dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes minerais,
Ó choupos, ó luar, bregas de Verão!

Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?

Ó padeirinhas a amassar o pão,
Velhinhas na roca de fiar,
Cabelo todo em caracóis!
Pescadores a pescar
Com a linha cheia de anzóis!
Zumbidos das vespas ferrões das abelhas,
Ó bandeiras! Ó sol! foguetes Ó toirada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Ó pregões de água fresca e limonada!
Ó romaria do Senhor do Viandante!
Procissões com música e anjinhos!
Srs. Abades de Amarante,
Com três ninhadas de sobrinhos!

Onde estais? onde estais?

Ó minha capa de estudante, às ventanias!
Cidade triste agasalhada entre choupais!
Ó dobres dos poentes às Ave-Marias!
Ó Cabo do Mundo! Moreira da Maia!
Estrada de Santiago! Sete-Estrelo!
Casas dos pobres que o luar, à noite, caia...
Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo,
Amortalhado em perrexil e trepadeiras,
Onde se enroscam como esposos e lagartas!
Sr. Governador a podar as roseiras!
Ó bruxa do Padre, que botas as cartas!
Joaquim da Teresa! Francisco da Hora!
Que é feito de vós?
Faláveis aos barcos que nadavam, lá fora,
Pelo porta-voz...
Arrabalde! marítimo da França,
Conta-me a história da Fermosa Magalona,
E do Senhor de Calais,
Mais o naufrágio do vapor Perseverança,
Cujos cadáveres ainda vejo à tona...
Ó farolim da Barra lindo, de bandeiras,
Para os vapores a fazer sinais,
Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras,
Dicionário magnífico de Cores!
Alvas espumas, espumando a frágua,
Ou rebentando à noite, como flores!
Ondas do mar! Serras da Estrela de água,
Cheias de brigues como pinhais...
Morenos mareantes, trigueiros pastores!

Onde estais? onde estais?

Convento de águas do Mar, ó verde Convento,
Cuja Abadessa secular é a Lua
E cujo Padre-capelão é o Vento...
Água salgada desses verdes poços,
Que nenhum balde, por maior, escua!
O Mar jazigo de paquetes, de ossos,
Que o sul, às vezes, arrola à praia -
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos
Corpo de Virgem, que ainda veste a saia,
Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!
Noiva cadáver ainda com véu...
Ossadas ainda com os mesmos fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta...
Bocas abertas que ainda soltam ais...
Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...)
Ó defuntos do Mar! Ó roxos arrolados!

Onde estais? onde estais?

O Boa Nova, ermida à beira-mar,
Única flor, nessa vivalma de areias!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar,
À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios!
Ó altar da Senhora, coberto de luzes!
Ó poentes da Barra, que fazem desmaios...
Ó Santana, ao luar, cheia de cruzes!
Ó lugar de Roldão! vila de Perafita!
Aldeia de Gonçalves! Mesticosa!
Engenheiros, medindo a estrada com a fita...
Água fresquinha da Amorosa!
Rebolos pela praia! Ó praia da Memória!
Onde o Sr. Dom Pedro, Rei-Soldado,
Atracou, diz a História,
No dia,... não estou lembrado;
Ó capelinha do Senhor da Areia,
Onde o Senhor apareceu a uma velhinha...
Algas! farrapos do vestido da Sereia!
Lanchas da Póvoa, que ides ã sardinha,
Poveiros, que ides para as vinte braças.
Sol-pôr, entre pinhais...
Capelas onde o sol faz morte, nas vidraças!

Onde estais?

2

Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera de maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-a com toda a força,
Clamam todas à uma: «Agora! agora! agora!»
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:

Senhora Nagonia!
Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Daguarda!
(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!

Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Semos probes!
Senhor dos ramos
Istrela do mar!
Cá bamos!
Parecem Nossa Senhora, a andar.

Senhora da Luz!
Parece o Farol...
Maim de Jesus!
É tal e qual ela, se lhe dá o sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!
Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matosinhos!
Os mestres ainda são os mesmos dantes -
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vasco da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos aflitos!
Mártir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!
O lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
«As armas e os varões assinalados...»

Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira,..
Como ela corre! com que força o Vento a impele:

Bamos com Deus!
Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele
Por esse mar de Cristo...
Adeus! adeus! adeus!

3

Georges! anda ver meu país de romarias
E procissões!
Olha estas moças, olha estas Marias!
Caramba! dá-lhes beliscões!
Os corpos delas, vê! são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis!
Têm nas orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faz-te Manel! viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito.
Que hão-de gostar!
Tira o chapéu, silêncio!
Passa a procissão

Estralejam foguetes e morteiros.
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Parecem Torres de David, na amplidão!

Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos no vago... não sei onde!
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mãos invisíveis levam-nos de rastros
Que eles mal sabem andar.

Esta que passa é a Noite cheia de astros!
(Assim estava, em certo dia, na Judeia!
Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!)
E aquela é a Lua-Cheia!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva na mão os Dados,
Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, toda de arminhos,
(Vê! dentre o povo em êxtase, olha-a a Mãe)
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,
Criança em flor que ainda não os tem.
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Mas ela sabe, a inocentinha,
Nas suas mãos, a Esponja deita mel:
Abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira.
Lá vem a Lança! A bainha
Traz ainda o sangue da Sexta-Feira...
Passa o último, o Sudário!
O Corpo de Jesus, Nosso Senhor...
Oh que vermelho extraordinário!
Parece o sol-pôr...

Que pena faz vê-lo passar em Portugal!
Ai que feridas! e não cheiram mal...

E a procissão passa. Preia-mar de povo!
Maré-cheia do Oceano Atlântico!
O bom povinho de fato novo,
Nas violas de arame soluça, romântico,
Fadinhos chorosos da su'alma beata.

Trazem imagens da Função nos seus chapéus.

Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro,
O Sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!

Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro.
Passam as chocas, boas mães I passam capinhas.

Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Aguinha fresca de Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!
À porta dum casal um tísico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo,
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as moscas do moribundo.

Dança de roda moças o coveiro.
Clama um ceguinho:
«Não há maior desgraça nesta vida,
que ser ceguinho!»
Outro moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho...
Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...»
E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina...

Que lindos cravos para pôr na botoeira!

Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Delíriums-trémens! Quistos!
Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam «uma esmolinha plas alminhas
Das suas obrigações!»
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar...

Qu'é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão eles que não me vêm pintar?


Paris, 1891-1892.


António Nobre (Porto, 16 de Agosto de 1867 – Foz do Douro, 18 de Março de 1900), foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista da geração finissecular do século XIX português. A sua principal obra, (Paris, 1892). Faleceu com 32 anos de idade, após uma prolongada luta contra a tuberculose pulmonar.

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