terça-feira, 6 de novembro de 2012

Vítor Oliveira Jorge


Vítor Oliveira Jorge, poeta convidado



Fim de tarde

Custam-me a passar os dias sem ti,
Embora me interrogue, claro,
Quem é este que se adianta a mim
A dizê-lo: e quem és tu, a quem ele
Aparentemente se dirige.
Às vezes os dias são duros como o asfalto
Molhado e escuro da noite que veio
Demasiado depressa, e nunca o teu rosto
Me visitou com o sorriso de outrora.
E não há música, dentro do nosso ser,
Nem ruas animadas de passantes,
Apenas os candeeiros parados, e a chuva
Lá fora, companheira insaciável daquele
Que lê, e que não chega jamais ao fim
Para poder talvez pousar as mãos cansadas
Sobre as tuas mãos frias, vindas lá de fora,
E sentir-se em casa, numa noite talvez longa,
Cheia de promessas e descobertas e murmúrios.
Caminhas às vezes à minha frente, e pergunto-me
Que imagem é essa, e por que é que os meus passos
Tentam imitar os teus, em percursos onde apenas
O teu cabelo, e jamais o teu rosto, me aparece.
Por que vamos os dois tão aparentemente
Indiferentes, cada um ao encontro da sua
Morte privada, ainda por cima quando chove,
E o asfalto é escuro, escorregadio, e espelha
Os versos contra o charco de si próprios,
Como que a insinuar a inutilidade de se escrever.

para a Flor






MÃOS
Às vezes, quando leio e sublinho
Vejo-me a mim mesmo já morto
E as mãos das pessoas em volta dos meus cadernos
E livros, e apontamentos, a preparam-se
Para deitar tudo fora, pois claro.
Ou então no passado em casa
Da minha primeira namorada, quando até
Era impossível fazer uma festa na mão
Não viesse logo a repressão maternal implacável
- E a pensar nos livros que havia de escrever
Para poder um dia dispor das minhas mãos
E dizer sobre uma mesa: alto, aqui é passado,
Presente e futuro confundidos.
E sobre eles vou pôr esta jarra de flores
Imperecíveis, que ficarão a lembrar
Estas mãos que essas sim hão-de morrer.





Pela garganta
custam-me os dias
quando tenho de te deixar ir
à tua vida

e fico a comer sozinho
qualquer coisa do micro-ondas
tentando agarrar-me aos livros
que me ligam ao que fui
para prosseguir
já não sei bem o quê
rodeado de todas as tuas memórias
que me atingem
como presenças ausentes
custam-me os dias

engolindo assim devagar
qualquer coisa
de indefinido
algo
que não me sai
da garganta
talvez o tempo
que estamos a perder
a cada instante
esta presença ausente
que vou comendo,
e custa a engolir.

jan. 2012





Vertigem

Chegamos sempre demasiado tarde
Com a sensação de que o acontecimento
Se desvanece... já foi, está a ser e a não ser,
Ficou adiado... um conjunto de impressões
Que nos deixam a boca amarga, quando
Nem os teus beijos me atenuam a secura
Desta nostalgia, destas vidas anteriores
Que vivemos, onde estivemos radicalmente
Sós um do outro, como se fôssemos mortos
Antecipados. Mas só hoje nos demos conta
desta vertigem.

jan. 2012





O difícil instante

Sobre o puro presente do teu corpo nu
Pairam sempre essas figuras espectrais
Do passado. Quem já passou por este quarto?
Com quem já gemeste antes aqui? Serei eu capaz,
No presente que te sou, de fazer esquecer,
Nem que por instantes, essas memórias?
Vejo os teus olhos dilatados, e por vezes
O teu rosto em transe. E quanto mais o prazer
Me apanha, amor, a tal ponto que parece uma faca
Que finamente me corta ao meio, ainda e sempre
As aves negras do teu passado me sobrevoam.

2012





Fotos (ilustração dos poemas) São Pedro do Sul e Ucanha: © de Amadeu Baptista

Poemas: © Vítor Oliveira Jorge

Vítor Oliveira Jorge nasceu em Lisboa em Janeiro de 1948. Licenciou-se em História na FLUL em Julho de 1972. Realizou quase toda a sua carreira universitária (doutoramento, agregação; foi professor catedrático desde 1990 e presidente do Conselho Directivo da FLUP em 1994/95) na Faculdade de Letras do Porto, até à aposentação em 2011. É arqueólogo, poeta, ensaísta. Recebeu em 2001 o grau de Grande Oficial da Ordem do Mérito, da Presidência da República.

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