quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Lassi Nummi



O VENTO DOS MONTES FAZ-ME PENSAR EM COISAS ESTRANHAS


Se o meu coração fosse tão velho como o jardim do imperador!

Se o meu coração fosse tão grande como a capital do governo do mandarim!

Então estaríamos sentados todos os dias, ela e eu,
                                   no jardim do meu coração
e cantaríamos loucas canções sobre um amor,
                                   jovem como um rebento de bambu
que a cada despedida do sol volta a nascer,
puro como bambu jovem, flexível como cana de bambu
e velho como o bosque de bambus
ou como o ancião solitário
                                    (ele sim é que é velho!)
que vive com os seus livros num templo em ruínas por detrás de Jiennah Tai,
que chamava velho a um bosque de bambu de dois anos
porque crescia numa terra muito antiga.

Sempre estenderia eu as mãos, de vez em quando assinalava
                                   como é grande o país do meu coração
e gritaria: “ Contempla esta província! Tudo, tudo isto é teu!”.

                                   Vuoripaimen, 1949



HOJE

A árvore tornou-se tão parecida com uma flor
que esquece a sua copa,
que esquece as suas raízes
quando sussurra:
“ Colhe-me, leva-me.
Quero falar
aos teus olhos. Quero encontrar alguém
ou morrer”.

A flor tornou-se igual a uma árvore.
Hoje - o dia como um milénio -
a flor enfloresceu, eleva para a luz
o seu intemporal
olhar:
“ Vem, ampara-te
a mim sussurrante formosura.”

                                   Taivaan ja maan merkit, 1956



COMO UM HOMEM QUE VOLTOU DE UMA GRANDE VIAGEM

Como um homem que voltou de uma grande viagem
que se deitou a dormir vencido pela noite e ao despertar de
    manhã
não reconhece imediatamente o lugar onde foi parar
e meio a dormir, desconcentrado, contempla objectos e cortinas,
    o contorno das portas
a luz mortiça do rectângulo das janelas
e sem contacto com o presente trata de procurar, recordar, e
trata de recordar onde deveria estar, aonde ir, a quem falar
e não ouve as vozes das crianças, partiram,
e procurando às cegas o lugar ao lado onde alguém respira pela
    noite
nota que está vazio
e enquanto rostos, lugares, quartos dão voltas na memória
procura entre eles este lugar, e intuindo apenas
o que procura, a imagem da sua mulher, a dos filhos
– e finalmente, atenazado por uma angústia mais profunda do que nuca
    entre estranhos
levanta a cabeça e contempla de perto este estranho lugar no mundo

assim levantei os olhos e procurei nos teus a nossa juventude comum
e vi a câmara deserta da velhice
cheia da luz severa dos invernos vindouros
que se demorou um instante e depois derreteu
no outono e na primavera,
no tremor da folhagem das primeiras bétulas
o alto silêncio do dia de verão, onde grita o mocho.

                                   Heti, melkein heti, 1980



ESTA COISA INSIGNIFICANTE

Na claridade do meio-dia
volto o meu olhar.
Na obscuridade da meia-noite
alongo a mão,
toco.
Pele contra pele:
aqui começa o homem.

                                   Kaksoiskuva, 1982




Na pele começa:
já não somos jovens.
A luz da cor da esperança, carnaval de desejos
desliza para longe.
O som do coração, forte, arrítmico
sente-se mais intenso do que antes.
Procura alguém que acredite já ter encontrado.
Procura o encontrado que crê já ter perdido.
Os áceres suspiram. Então,
                        como bem te lembras,
é a hora do amanhecer.
No horizonte adensa-se a luz
torna-se por momentos mais intensa.
Agora é a manhã do mundo.

                                   Kaksoiskuva, 1982



VISÃO DA NEVE PURA

Tinha adormecido um instante sem dúvida
à minha mesa: estavas ali
com o teu casaco de inverno, sob o nevão, luminosa, sorridente
como há duas décadas, como
há pouco esta manhã, quando te foste,
ou agora dentro de pouco à tarde quando regressares
não estavas cansada
sorrias-te luminosa
mais jovem? ou como agora, mas
dentro de nós voltava a existir a mesma leveza
que lá, naquele lugar a que quase
chegamos em direcção ao que durante todo o tempo
estivemos a caminho

e no arrojado mar do instante
desejava-te sentia a tua falta
a ti e à tua imagem, esta
familiaridade, eu futuro eu passado, esta
leveza:
imagem após imagem, a realidade com a dupla imagem
da realidade através da que
alguém sorri, és bela, alguém
és tu

                                   Kaksoiskuva, 1982



Durante muito tempo foste para mim
                        céu e terra e mar
Procuram-te todavia as minhas cegas ardentes amargas raízes
                        a ti
apesar de lhes negares
a água.

                                   Kaksoiskuva, 1982



Antes que o grande mar nos leve no seu abraço
quero-te uma vez mais.
Se nos obriga a separarmo-nos, se nos dilacera as células
da alma e do corpo,
quero que cada uma delas
cada cega partícula do corpo, cada
agitado movimento da alma
leve dentro de si este instante, te leve a ti,
imagem, recordação,
o mais belo,
o mais amargo.

                                   Kaksoikuva, 1982



DEPOIS, NAQUELA NOITE

Depois, naquela noite, quando quiseres amar-me à meia-noite,
acorda-me.
Os nossos lençóis estão frescos, brancos
como a neve no crepúsculo da paisagem.
Talvez u tenha esperado, talvez me tenha cansado de esperar, vem.
Não fiques paralisada por teres carregado o mundo como uma árvore negra, mas
vem. Acorda-me. Deixa-me despertar
através da velhice e da morte, e desperta-me tu,
vem como um nevão, funde-nos

com a unidade do mundo.
Que o nosso amor seja dubitativo e tagarela.
Através do mundo existe esse
amor, quando quiseres, desperta,
à meia-noite, quando
o mundo se entrega. Vem.

                                   Kaksoiskuva, 1982

Versão minha - © Amadeu Baptista



Lassi Nummi nasceu em Helsínquia, em 1928. Publicou o seu primeiro livro de poesia em 1949. Foi jornalista e crítico literário. Foi presidente da Associação Finlandesa de Escritores e do Pen Clube. Foi membro da comissão de tradução da Bíblia. Faleceu a 13 de Março deste ano.



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