O CANTO DO LÚCIO
Do seu húmido lugar
subiu o lúcio à árvore para cantar.
Quando as nuvens cinzentas
deixavam ver a luz do dia
e a agitação das risonhas folhas
despertava na baía,
subiu o lúcio à copa do abeto
para mascar a pinha vermelha.
Terá visto, ouvido ou farejado,
ou na ponta da pinha saboreado
o resplendor indizível
do orvalho da manhã
quando abrindo
a ossuda boca
ampliando
a mandíbula
berrou uma canção
tão selvagem e grave
que nesse instante se calaram os pássaros
como se lhes tivesse caído em cima
todo o peso da águas
e o frio abraço
da solidão.
Jääpeili, 1928
DOLCE FAR NIENTE
às 9
noite rua vivaz
com pedras reluzentes
como uma lenda policroma
o teu caminho a casa sob a linha de faróis
quando pressa feliz
voltas melodia estrondo
do trabalho manequim
sorriso imbecil
as radiantes luas das lojas
milhares de peões desconhecidos
garras
de automóvel
a rua
desgarram
olhos cheios
torrentes de luz entram na tua cabeça
uma luva branca
STOP
uma luva branca numa mão estendida
bru-bru-burr
um homem cansado caminha seguro
caminho caminho vespertino caminho
luas e mais luas resplandecem
os pensamentos saboreiam já o sonho
doce doce cansaço
intensa formosura nocturna
dolce far niente
Jääpeili, 1928
Atrás da mesa
o olho branco da janela
solidifica
c c c
c c c
h h h soa SONHA
o o o zumba
v v v
e e e estraleja
na estreita
quebrada
da rua
através do zumbido
o eco dos passos que correm
avança
c c c c c c
a vida c c desvanece-se
h h
o o
v v
e e
uma rua de pedra
soa soa soa
Jääpeili, 1928
LADO A LADO
a teu lado estava escutando
a pulsação da tua veia jugular,
encontrei muitas palavras, muitas,
para os movimentos dos teus membros.
As horas atravessam-nos furtivamente
Com pés ligeiros e sensíveis.
O pensamento revoluteou daqui para ali
com o calor do seu arbítrio.
Acaso sentes que não foi
tão avaro o voo da nossa noite?
Acaso acariciei, muito silenciosamente,
em alguma parte, os caminhos dos teus sonhos?
Huovajat keulat, 1946
O ÚLTIMO DINOSSAURO
Eu, só e de mui nobre linhagem,
o último da estripe dos dinossauros.
De uma estripe? Não, de um mundo
que à minha volta jaz moribundo.
Só, nobre, permaneci,
e ao mesmo tempo, tão alheio a tudo,
sim, nada iguala o nosso destino.
Éramos grandes e poderosos.
O que andava, fazia retumbar a terra,
o que nadava, deixava para trás estelas de espuma,
o que voava, obscurecia a estrela diurna.
Sim, éramos coisas grandes e poderosas,
soberbos entre os seres vivos,
senhores da terra e do mar e dos céus.
Em nós residia toda a formosura,
E uma vocação de perfeição mais pura;
banhávamos em luz a nossa pele escamosa,
alçávamos do colo a curva orgulhosa.
Eu via figuras onde a beleza morava,
sorte de estar só, e a cada um bastava
a liberdade de andar com a cabeça levantada.
Mas chegou a perdição. Aproximava-se e comia.
Sitiava-nos com as suas hordas.
Éramos poucos e eles numerosos,
invencíveis nos seus astutos caminhos.
Chegou a perdição. Aproximava-se e comia;
em cada arbusto a raça anã espiava,
em cada sombra a sua pata peluda vislumbrava-se.
Quem são? Uma horda que corre uivando,
galopa farejando, fariscando, acossando,
e que transporta as suas feias crias
em bolsas sob o ventre, escondidas,
com percevejos e moscas, e cérebros ardentes
sempre de fome dolentes.
Raça de lactantes, de famélicos,
acabaste com a lenda dos dinossauros,
mas nunca vos levantareis sobre a terra
como nós; sois pó e imundície,
a plebe organizada dos esfomeados –
Talvez um dia do vosso barro vos possais levantar.
Quanto, é algo que a vós compete determinar.
Huovajat keulat, 1946
Versão minha - © Amadeu Baptista
Huovajat keulat, 1946
Versão minha - © Amadeu Baptista
Aaro Hellaakoski (1893-1952). Nasceu em Oulu. Em 1929 doutorou-se em Filosofia. Foi professor de ciências naturais e geografia. A partir de 1930 foi professor catedrático na Universidade de Helsínquia. O seu livro Jääpei, com influências do dadaismo, é uma obra capital do modernismo finlandês.
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