segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Aaro Hellaakoski



O CANTO DO LÚCIO

Do seu húmido lugar
subiu o lúcio à árvore para cantar.
Quando as nuvens cinzentas
deixavam ver a luz do dia
e a agitação das risonhas folhas
despertava na baía,
subiu o lúcio à copa do abeto
para mascar a pinha vermelha.
Terá visto, ouvido ou farejado,
ou na ponta da pinha saboreado
o resplendor indizível
do orvalho da manhã
            quando abrindo
            a ossuda boca
            ampliando
            a mandíbula
berrou uma canção
tão selvagem e grave
que nesse instante se calaram os pássaros
como se lhes tivesse caído em cima
todo o peso da águas
e o frio abraço
da solidão.


                                                           Jääpeili, 1928


DOLCE FAR NIENTE


às 9
noite rua vivaz
com pedras reluzentes
como uma lenda policroma
o teu caminho a casa sob a linha de faróis
    quando                                         pressa feliz
          voltas                                     melodia estrondo
                 do trabalho             manequim
                                                           sorriso imbecil

         as      radiantes      luas      das                lojas
         milhares de peões desconhecidos
            garras
         de automóvel
a rua
desgarram

olhos cheios
torrentes de luz entram na tua cabeça
                        uma luva branca
                        STOP
uma luva branca numa mão estendida
                        bru-bru-burr
um homem cansado caminha seguro
caminho      caminho vespertino     caminho
luas e mais luas resplandecem
os pensamentos saboreiam já o sonho


doce doce cansaço
intensa formosura nocturna
                        dolce far niente

                                                           Jääpeili, 1928


Atrás da mesa
            o olho branco da janela
                                   solidifica
              c   c   c
                 c   c   c
                   h   h  h      soa  SONHA
                     o   o   o              zumba
                       v   v   v
                          e   e   e     estraleja

            na estreita
               quebrada
            da rua
         através do zumbido
      o eco dos passos que correm
            avança

        c   c   c   c   c   c
a vida      c   c    desvanece-se
              h      h
            o          o
          v               v
        e                    e
       uma rua de pedra
soa     soa    soa

                                                           Jääpeili, 1928

LADO A LADO

a teu lado estava escutando
a pulsação da tua veia jugular,

encontrei muitas palavras, muitas,
para os movimentos dos teus membros.

As horas atravessam-nos furtivamente
Com pés ligeiros e sensíveis.

O pensamento revoluteou daqui para ali
com o calor do seu arbítrio.

Acaso sentes que não foi
tão avaro o voo da nossa noite?

Acaso acariciei, muito silenciosamente,
em alguma parte, os caminhos dos teus sonhos?

                                              
                                                                       Huovajat keulat, 1946


O ÚLTIMO DINOSSAURO

Eu, só e de mui nobre linhagem,
o último da estripe dos dinossauros.
De uma estripe? Não, de um mundo
que à minha volta jaz moribundo.
Só, nobre, permaneci,
e ao mesmo tempo, tão alheio a tudo,
sim, nada iguala o nosso destino.

Éramos grandes e poderosos.
O que andava, fazia retumbar a terra,
o que nadava, deixava para trás estelas de espuma,
o que voava, obscurecia a estrela diurna.
Sim, éramos coisas grandes e poderosas,
soberbos entre os seres vivos,
senhores da terra e do mar e dos céus.

Em nós residia toda a formosura,
E uma vocação de perfeição mais pura;
banhávamos em luz a nossa pele escamosa,
alçávamos do colo a curva orgulhosa.
Eu via figuras onde a beleza morava,
sorte de estar só, e a cada um bastava
a liberdade de andar com a cabeça levantada.

Mas chegou a perdição. Aproximava-se e comia.
Sitiava-nos com as suas hordas.
Éramos poucos e eles numerosos,
invencíveis nos seus astutos caminhos.
Chegou a perdição. Aproximava-se e comia;
em cada arbusto a raça anã espiava,
em cada sombra a sua pata peluda vislumbrava-se.

Quem são? Uma horda que corre uivando,
galopa farejando, fariscando, acossando,
e que transporta as suas feias crias
em bolsas sob o ventre, escondidas,
com percevejos e moscas, e cérebros ardentes
sempre de fome dolentes.

Raça de lactantes, de famélicos,
acabaste com a lenda dos dinossauros,
 mas nunca vos levantareis sobre a terra
como nós; sois pó e imundície,
a plebe organizada dos esfomeados –
Talvez um dia do vosso barro vos possais levantar.
Quanto, é algo que a vós compete determinar.


                                                                  Huovajat keulat, 1946


Versão minha - © Amadeu Baptista





Aaro Hellaakoski (1893-1952). Nasceu em Oulu. Em 1929 doutorou-se em Filosofia. Foi professor de ciências naturais e geografia. A partir de 1930 foi professor catedrático na Universidade de Helsínquia. O seu livro Jääpei, com influências do dadaismo, é uma obra capital do modernismo finlandês.

Sem comentários:

Enviar um comentário