sexta-feira, 14 de setembro de 2012

António Cabral





Poemas de António Cabral



QUANDO OS CÂNTAROS DESCEM OS TEUS OLHOS


1.


A vida a minha se demove
quando os cântaros descem 
os teus olhos.


Ficarei
à esquina de mim próprio
a ver-te passar dentro?


Oh de cravos tão breve
a enfeitar-nos a tenda!


2. 


Escolho o voo deste insecto 
azul


pois entender o gesto
é tentar a improvável travessia
de sua água.


Só. O resto é passar rente
como poisar o brilho
num beiral.


3.  


E escolho ainda
o tépido teu
ombro


a sabedoria tão sal
vadora da tua coxa
(que ninguém fale em fogo


mas em linho). Molhar-nos-emos
no regato rápido do tempo.


4.


A hora tem a forma de uma tenda
a tenda tem a tua forma.


Sob as tuas ramagens
passa um tropel de estrelas
ainda elas

pois há um instante
em que a luz contra a luz é perceptível.
Tu tens a forma de um cântaro


5.


que se parte na boca
em boca
dinhos de tanto azul.


Outro cântaro desce a tua margem
a tua margem desce a tua água.
Tu és a água que não tem margem.


O brilho cai então do beiral
e acende-te nos meus ramos.



(in Entre o azul e a circunstância. Vila Real: Livros do Nordeste, 1983)




FAREMOS DO ENVELHECER UMA ARTE?


O tempo devolve, quase intacto,
o olhar suficiente. E as águas
vão ficando para trás, mansas,
algumas à nossa frente,
no hábito de as reflectir.
Há um sabor, um odor subtil
de madeiras, quando esculpimos
as mãos.


(in Ouve-se um rumor. Vila Real: Livros do Nordeste, 2003)





ALTO DO VELÃO, AO ENTARDECER



A luz ao ficar breve 
divide o estar aqui 
em a mão que o escreve 
e um brilho de ti


não adere mas fere 
suavemente as coisas 
que lhe vão sendo escritas 
na indulgente ardósia


ainda um voo de águia 
prestes a recolhida 
recolhe-se uma urze 
que não ficou escrita


e assim tu me decides 
que no vale se nasce 
e contigo se eleva

vamos ficar assim 

ao ver-te quase névoa
neste vário volume 
de sensações esquivas 
que o entardecer reduz


o reduz à medida 
do entardecer no feno 
não ouves uma flauta 
longínqua no vento?


Assim quanto mais breve 
a luz mais se dilata 
até ser doutro modo 
total a sua fala.


(in A tentação de Santo Antão. Chaves: Tartaruga, 2007)



Foto: © de Amadeu Baptista

António Cabral foi um escritor, investigador, professor e animador sociocultural português.
Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a atividade literária aos 19 anos com a publicação do livro de poesia Sonhos do meu Anjo. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, e dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer,
“paraíso do vinho e suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.
António Cabral faleceu em Vila Real a 23 de Outubro de 2007, aos 76 anos de idade, ano em que foram publicados os livros de poesia O Rrio que Perdeu as Margens e A Tentação de Santo Antão,
prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.



Nota: a partir deste post, sob a etiqueta 'Poetas no Coração, este blogue passará a publicar poesia de autores
que, embora já desaparecidos, permanecem no meu coração.

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