Poemas de António Cabral
1.
A vida a minha se demove
quando os cântaros descem
os teus olhos.
Ficarei
à esquina de mim próprio
a ver-te passar dentro?
Oh de cravos tão breve
a enfeitar-nos a tenda!
2.
Escolho o voo deste insecto
azul
pois entender o gesto
é tentar a improvável travessia
de sua água.
Só. O resto é passar rente
como poisar o brilho
num beiral.
3.
E escolho ainda
o tépido teu
ombro
a sabedoria tão sal
vadora da tua coxa
(que ninguém fale em fogo
mas em linho). Molhar-nos-emos
no regato rápido do tempo.
4.
A hora tem a forma de uma tenda
a tenda tem a tua forma.
Sob as tuas ramagens
passa um tropel de estrelas
ainda elas
pois há um instante
em que a luz contra a luz é perceptível.
Tu tens a forma de um cântaro
5.
que se parte na boca
em boca
dinhos de tanto azul.
Outro cântaro desce a tua margem
a tua margem desce a tua água.
Tu és a água que não tem margem.
O brilho cai então do beiral
e acende-te nos meus ramos.
(in Entre o azul e a circunstância. Vila Real: Livros do Nordeste, 1983)
FAREMOS DO ENVELHECER UMA ARTE?
O tempo devolve, quase intacto,
o olhar suficiente. E as águas
vão ficando para trás, mansas,
algumas à nossa frente,
no hábito de as reflectir.
Há um sabor, um odor subtil
de madeiras, quando esculpimos
as mãos.
(in Ouve-se um rumor. Vila Real: Livros do Nordeste, 2003)
ALTO DO VELÃO, AO ENTARDECER
A luz ao ficar breve
divide o estar aqui
em a mão que o escreve
e um brilho de ti
não adere mas fere
suavemente as coisas
que lhe vão sendo escritas
na indulgente ardósia
ainda um voo de águia
prestes a recolhida
recolhe-se uma urze
que não ficou escrita
e assim tu me decides
que no vale se nasce
e contigo se eleva
vamos ficar assim
ao ver-te quase névoa
neste vário volume
de sensações esquivas
que o entardecer reduz
o reduz à medida
do entardecer no feno
não ouves uma flauta
longínqua no vento?
a luz mais se dilata
até ser doutro modo
total a sua fala.
(in A tentação de Santo Antão. Chaves: Tartaruga, 2007)
Foto: © de Amadeu Baptista
António Cabral foi um escritor, investigador, professor e animador sociocultural português.
Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a atividade literária aos 19 anos com a publicação do livro de poesia Sonhos do meu Anjo. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, e dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer,
“paraíso do vinho e suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.
António Cabral faleceu em Vila Real a 23 de Outubro de 2007, aos 76 anos de idade, ano em que foram publicados os livros de poesia O Rrio que Perdeu as Margens e A Tentação de Santo Antão,
prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.
Nota: a partir deste post, sob a etiqueta 'Poetas no Coração, este blogue passará a publicar poesia de autores
que, embora já desaparecidos, permanecem no meu coração.
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