quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Isabel de Sá


Isabel de Sá, poeta convidada


Três poemas:




DENTRO DAS IMAGENS 

Os poemas têm veneno na boca.

Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.

Em que parte do planeta
há mais ódio? A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.

Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.

São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
por que se esquecem de amar.








Só o lume dos teus beijos rompe
a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro,
na semente de um amor atribulado.

Conhecemos o ritmo e a sede,
a convulsão do desamparo.
No sentido do corpo, no acerto
desce a força pelos braços
na violenta festa do prazer.

Tudo o que disseste
no desaforo da paixão
só podia incendiar a vida inteira
e encher de esperança o universo.








A VERDADEIRA BIOGRAFIA: O PERCURSO

A minha biografia
é evidentemente excepcional.
Tive um Pai uma Mãe
nasci numa Casa
fui à Escola da vila
depois do concelho.
Mudei de distrito para
continuar
e o caminho da instrução
concretizou-se na Faculdade
de Belas Artes.

Da infância passada em plena
Natureza lembro
a beleza das estações do ano
os rituais católicos
uma criada preferida
o instante em que aprendi a ler.
Chegou a adolescência
e com ela a certeza
Quero ser professora de Desenho.
Suponho que a Biblioteca
me salvou do desastre
interior.
Tinha dezassete anos
e requisitei “Uma Época
No Inferno” de um rapazito
chamado Jean - Arthur Rimbaud.

Na Biblioteca o empregado
olha-me sempre com reserva.
Eu estudava o quê?
Um dia livros de medicina
outro dia de poesia.
Então a ciência é poética?

A entrada na vida adulta
aliada à independência
e ao amor. O meu país
sofreu uma revolução. A democracia
não honrou ainda a sua palavra.
Cumpro deveres e não posso
usufruir de direitos proporcionais.
Eu e alguns milhares
neste sentimental canto
europeu sob um regime
semiditatorial
contribuo
para a sopa e os vícios
de alguns milhares de parasitas.

Mudando de assunto a pátria
é grande e a família também.
Para mim já passou
o meio século. Já foi o Pai
a Mãe e o Irmão mais velho.
Estou por cá à espera
certamente.

Não é provável que me entregue.
Conheci o galinheiro do confessionário
ajoelhei-me diante do altar
da virgem. Apaixonei-me.
Também recebi um terço de prata
no dia da comunhão solene.
E na hora exacta o óleo
perfumado do crisma.

Sempre que vou a uma missa
de corpo presente lá está o mesmo altar
com a deslumbrante
virgem. Entretenho-me
a recordar que já tive
quinze anos e também
adorei.

Depois a Páscoa a soturna
via sacra onde sofria
pela minha dor
e as beatas exibiam lágrimas
como dádiva pelo calvário
a que Jesus foi sacrificado.

Jesus era belo na sua passividade.
Os longos cabelos
o olhar suplicante
as pernas
o tronco liso
o ventre. Por fim
a entrega. Braços abertos
para o bem e para o mal.

Agora neste dois mil e seis
trata-se de insistir. Já é tarde
para quase tudo.
Os meus contemporâneos alimentam
uma curiosidade fétida.
A obra é minha. Faço
o que quero. Escondo
rasgo
mostro
transformo
entrego ao crematório
deixo aos herdeiros
ao vaticano
não deixo.

Nunca esmolei. Não fui pobre.
Mas os sinais da exclusão
o ódio é tão luminoso
que seria patético
psicotisante até
não articular sequer
estes versos
antes da eutanásia.






Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: © Isabel de Sá


Isabel de Sá nasceu em Esmoriz a 8 de Setembro de 1951. Licenciou-se em Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Expõe desde 1977 e, paralelamente, exerce actividade literária, tendo reunido em 2005, num único volume, REPETIR O POEMA, edições Quasi, todos os seus os seus livros de poesia. Em 1983 obteve o Prémio de Pintura – Prémio Nadir Afonso- Bienal de Chaves e o Prémio de Aquisição do Banco de Fomento – Exposição de Arte Moderna, Lisboa
Foi co-fundadora das revistas de poesia COLAGEM, em 1980, SERPENTE em 1983, assim como das edições MIRTO em 1984 e BRILHO NO ESCURO em 2009. Entre 1983 e 1988 foi colaboradora do JN, na página Cultura, escrevendo sobre poetas da sua geração. Colaborou com desenhos e poemas em suplementos literários de jornais, volumes colectivos, revistas e antologias –Diário de Lisboa, Diário Popular, JN, Poetas do Café, Raiz & Utopia, Sema, Hífen, Colóquio-Letras, Espaço/Espacio Escrito, Logos, Cadernos de Serrúbia, Via Latina, O Mono da Tinta, Relâmpago, Hora de Poesia, II Cobold, Micromegas, Sião, Poetas Escolhem Poetas, Quadrant, Europe, Literatur und Kritik, Poesia Contemporânea (México), A Ideia, Poemas de Amor, Vozes e Olhares no Feminino (Porto 2001), Europe Plurilingue – Vozes do fim do século XX. 
Está representada na 16ªedição da História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e Óscar Lopes, no Dicionário de Literatura Portuguesa, 1ªedição, de Álvaro Manuel Machado e na História da Literatura Portuguesa, Volume 7 (As Correntes Contemporâneas) de Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho, 2002.

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