segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Pia Tafdrup



POEMAS DE PIA TAFDRUP




TIRO

Tiro os pássaros mortos
da prateleira da cozinha
e lavo as mãos

livre de encharcadas preocupações
que deixam marcas em toda a parte
em portas e caixilhos

caio
e lastimo-me joelho e mãos e nariz
contra o chão na casa vazia

reconheço o odor
quando se vara um anjo


Når det går hul på en engel, 1981




A PRIMEIRA LETRA

Desejo que ao teu ódio o leve o vento
– ou ao meu
desejo calma
como a que envolve
a primeira letra do alfabeto
Desejo ver as venenosas sombras suprimidas do teu rosto
que volte a brilhar o sol interior
Desejo um idioma secreto entre nós
que possa deter a guerra que temos mantido
a tua fé contra a minha
um idioma que possa fechar a minha ferida e devolver-me ao sonho
Sou para ti, amor meu
o que tu és para mim
Desejo um idioma
onde confluam dois rios
sem que se pergunte de onde
ou de aonde
Calma como árvores que crescem.

Krystalskoven, 1982




A GOTA

Numa gota
perde
um insecto
a vida

no mar
perde-se
uma lua
a si mesma

a distância
para a morte
nunca é
maior
que estar ao lado

Springflod, 1985




CADA POEMA

Cada palavra que tenho uma pena
que brilha
como o coração num corpo
cada frase que tenho uma asa
que ao tocar-me como o teu olhar
me faz esquecer tudo o mais

cada poema que tenho um pássaro
que se eleva e ao avançar pelo ar
me lança para um novo começo

uma palavra é uma pena é uma asa é um pássaro que foge

Springflod, 1985




PALAVRAS

Uma pessoa
que fala
só tem uns poucos sons
para se fazer entender
e
dentro
de toda
a palavra
esse lugar
cego
chamado

silêncio


Springflod, 1985




MAS TU

Eu sou real
e posso respirar
sem resistência

o céu de carne
o ar de sangue

mas tu introduzes-me
num sobrescrito descorado

escreves-me
num poema

o
que é pior.


Hvidfeber, 1986




O MEU CASAMENTO CONTRA A LITERATURA

Esta tarde com Dostoievski
esta noite com Freud e Nietzsche
este meio-dia com Rilke
segundos polinizados gota a gota.

Passei a ler 27 anos
ainda assim sabe tão pouco o coração
ainda assim é manhã um país
que nunca vi.

Sou perita em catástrofes, carícias
que avultam num pinhal de golpes dolorosos
o meu perfume mostra o caminho
para novos afundamentos e naufrágios.

Para tantas idiotices
volta a estar preparado o coração
para tantos despenhamentos
em que libertar-se

Sckundernes oro, 1988


Versão minha - © Amadeu Baptista




Pia Tafdrup, nasceu em Copenhaga, a 29 de Maio de 1952. Publicou o seu primeiro livro de poesia em 1981, Når det går hul på en engel, tendo publicado até à data mais de uma vintena de livros. Pertence à Academia Dinamarquesa e foi galardoada, em 1999, com o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico. Está traduzida em mais de 25 línguas, sendo que em português foi alvo de uma tradução colectiva em Mateus, completada a apresentada por Laureano Silveira (Ponto de Focagem Oceano, Quetzal Editores, Março de 2004)

Sem comentários:

Enviar um comentário