MÃOS
As mãos são um entrançado
em volta de mãos
e corpos, flautas,
copos, ferramentas.
As mãos são astutas,
as mãos tocam,
trabalham,
não têm palavras.
As mãos recebem-me,
com as mãos recebo.
Levanto a mão
com ela mato.
Levanto a mão,
acaricia-te a pele.
Landskap 2, 1979
LUZ
A luz que chega,
chega cada dia
do sol, da lua e das estrelas.
Assim é, dizemos.
Tal como com as ondas
e as praias ao vento,
as praias
com algas e seixos.
É assim, dizemos.
E as nuvens
e a grande chuva persistente
e o meu gato
que se estira
com o lombo arqueado.
Vemos o contra-luz
com maior claridade
que a luz de trás.
Derrete os nossos olhos
e devém
luz na luz.
Mas também a luz
por detrás das nossas costas
é luz,
demonstra-o a nossa sombra.
Por isso diz
Li Bai num poema:
Esta noite
com a lua nas costas
danço
com a minha sombra.
Landskap 2, 1979
PRIMEIRO CANTO DE GON
Um homem monta a cavalo
e afasta-se a cavalgar.
Tarda um pouco
antes de se sentar na sela,
nem mais, nem menos que
toda a vida que viveu.
Ao rés dos campos descansa
a branca neblina matinal.
Há orvalho na erva
e pegadas de homem e de cavalo.
O que sente o meu corpo?
Sinto o seu encontro com
o ar que me rodeia.
O ar que me dá no
rosto e nos olhos,
nos braços e nas mãos,
o peito, o cabelo, a levantar-me
a veste.
Esta noite o céu é tormenta
e fulgores de relâmpagos longínquos.
Escuto o fogo da minha
lareira
e a chuva que vem,
marcas de pés nas árvores
e o grito que envolve a casa
do vento que se aproxima.
A obscuridade habita
na sombra das árvores.
Landskap 3, 1981
POEMA ANTI-POEMA E POEMA
Tudo o que ouvimos, saboreamos,
cheiramos, sentimos e vemos
é e é efeito
simplesmente de incontáveis
acontecimentos mais pequenos que pequenos.
mil anos e mil anos
um dia, a instantânea
humidade da neve na cara
milhões de anos
Só agora, não antes,
nem depois se vai o vento
precisamente assim através da erva,
precisamente assim na nuvens, escuras
sobre a noite com a luz
de um sol submerso.
E o canto da cigarra é precisamente assim.
Perante os meus olhos um fluente
instante de terra as rosas precisamente assim.
Escondida na terra
no mês de Março.
nas mais profundas raízes
tem lugar,
lentamente,
oh, lentamente.
Em terra, em pedra, em uma
e uma vida, sob o frio
e sob o grande
vento tem lugar a primavera.
Inter er her, 1984
Passam imagens no mundo,
imagens de nada
que ninguém pode ver já,
azul aéreo, fotografias
invisíveis
de um tempo que foi.
Nessa, alguém se inclina
sobre um berço, um juiz
levanta a sua caneta, lentamente
o verdugo o seu machado,
nos bosques de fetos
dinossáurios,
trinossáurios,
e ali um pássaro que voa,
o primeiro,
na tarde do Outono tardia
ladra um cão.
Átomos em nuvens de pó
caem sobre átomos
o peso de milhares de milhões de anos
contra um peso maior
acende um sol
em colisões caóticas.
De joelhos e mãos atadas atrás
inclinado para a terra
uma nuca, um dorso
em Xangai,
um horror, um disparo,
em Belsen uma mão,
um olhar em Hiroshima.
E o cheiro do húmus do bosque,
mãos cerúleas de mirtilos
e o cheiro a cogumelos,
o salto de uma rã
um lugar no mundo
e o lugar de ninguém
Nagasaki,
o crime esquecido
e amor, amor
dias em corpos,
noites em corpos, selvas, savanas,
os tambores. De ninguém.
I jordens hus, 1986
N. do T. – Belsen. Referência a Bergen-Belsen, por vezes referido como Belsen, foi um campo de concentração alemão da época de Adolfo Hitler, localizado no actual estado da Baixa Saxónia. Entrou em funcionamento em 1940, como campo de prisioneiros de guerra. Tornou-se um campo de concentração em 1942, tendo sido comandado pelas SS a partir de 1943.
Versão minha - © Amadeu Baptista
Sigmund Mjelve é norueguês, mas nasceu na China, em 1926. Só aos 13 anos é que se instalou na Noruega. O seu primeiro livro de poesia data de 1978. É tradutor para norueguês de poesia chinesa.
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