domingo, 12 de fevereiro de 2012

Poemas de Caravaggio - Três elegias

1.
É em manhãs assim que não sei como escrever
elegias, vou ao ágora do poema e só encontro
cães, e os cães estão sôfregos pelo que paira no ar,
a extensa litania que submerge a cidade e irrompe
do sentido para prevalecer. É uma manhã napolitana,
com fumarolas e lâmpadas a crescer pelas praças,
e os cães estão a céu aberto a marcar com as patas
o exíguo território a que se confinam os mortos,
os mortos amontoados nas ruas, como se fossem
uma barreira para o mar, uma barreira de coral
com pés e mãos, e bocas hiantes no sobressalto
do mundo. É em manhãs assim que alguma coisa pica
o sangue, e me lembro de ti um pouco antes de seres
definitivamente mulher, e és uma rapariga camponesa
a enumerar as ondas, a descer sobre os campos
onde todas as batalhas decorrem, todos os clarões.
És hoje esta elegia, mas não sei, ainda, como hei-de
escrever-te, permaneces no templo e guardas na luz
o teu contorno marítimo, onde há colinas nuas
e arbustos pequenos como os teus dentes miúdos.
Os cães aguardam, e uivam, e rosnam, e é esse o sinal
para o arrebatamento, vem um braço de vento tocar-te
o rosto e sou eu que toco os teus cabelos, numa carícia perfaço
um juramento em que estás presente, ainda que estejas
ausente, e só saibam os cães onde, e como, procurar-te.
Encontro-te, talvez, um pouco acima do céu, um pouco abaixo da terra,
encontro-te exactamente onde Nápoles se olha no escuro
e onde tenho a boca em fogo para pronunciar o teu nome,
ainda que em manhãs assim não saiba como escrever
elegias e a partida seja um rio intranquilo em que tudo
te lembra. Eu e os cães ouvimos vozes nocturnas, e, de repente,
apareces, e a manhã estremece, e vibra, muito branca,
sendo que os cães sabem tudo de ti e eu te choro
sob esta sombra, ainda que o sol brilhe sobre o mar,
ainda que a janela entreaberta enquadre a nitidez de uma silhueta
com o teu rosto, e eu não seja mais que um navio votivo, perdido a jusante.



2.
Claro, o mármore transpõe o teu rosto para o tempo
e deixa-te a sorrir pelos séculos, sobretudo nas estações
do ano em que a luz é mais densa e a memória é, ainda,
um indício de como se trabalha na terra e como a terra
nos trabalha a nós. No mármore ficam todas as sedimentações,
todas as maçãs, todos os ritmos em que o apaziguamento
recobrou os sentidos e te leva pela casa a altas horas
da noite a murmurar canções indizíveis, às vezes coisas obscenas,
que tu cicias com um sorriso cândido quando há gente em volta
a insistir em ouvir a tua voz. No mármore ficam os filhos
que tiveste ou lamentaste não ter e, também, as noites de luar
em que te chamas madrigal e invocas os anjos para que sejas
tu mesma um anjo. E ficam os mantimentos que escolheste anos a fio,
a tua sombra magnífica sobre o fogão, e o teu perfume,
esse perfume dourado a conjecturar sobre o amor
como se o amor fosse não só uma essência mas todos os jardins
do mundo. Claro, o mármore cinge-te às coisas que só tu pudeste
ser, mas incredulamente, como tu dizes, e continuas a ser
nesta irremediável dimensão da pedra em que tudo se transforma
para que a sua fria dureza manifeste algo idêntico ao teu corpo
e tu te reencaminhes na eternidade sem outra vocação
que a de voltares a nascer logo que possível para vires mimar
o gato, as flores, a neve quase azul da primavera e, depois, reacenderes
a lareira com os teus finos gestos de adoradora do sol.


3.
Não sei como pode um homem desolado conduzir
os exércitos e dar à emboscada um sentido preciso
no rumo do combate. Não sei como posso
ainda erguer-me e sentir o sol na cara,
ou ver, ao longe, os duzentos cavalos a desbravar
a montanha e sentir, com eles, o coração
acelerado e triunfal, não sei como posso
sentir a aljava de buxo nos meus dedos
ou desmontar a tenda na hora do regresso
sem que saiba de que sono e ausência precaveste
os mais íntimos enigmas que o teu corpo
fechou sobre ti mesma. Não sei como tolerar
o intolerável e ir à guerra e sentir vertigens
pela falta que me fazes cada dia e noite.
Não sei como pode a água ser clara e a trepadeira
florir assim, com luz vermelha, se a dor que me mantém
é a tua sombra imóvel, e inviolável, nesta casa. Não sei
como entender o que grita e ruge e se amotina
no meu peito porque não voltarás a encher o meu bornal
nem estarás comigo a ver a bruma densa
sobre os campos de feno. Não sei, não sei
sequer como erigir uma elegia em que te possa
lembrar na desvelada ternura que entregaste
aos prisioneiros que fiz na última batalha.
Não sei como suprir o que esta perda
me trouxe de frio e maldição, ou como adormecer
contigo na memória e a garganta áspera
do vinho negro e doce da libação amarga.

(in Poemas de Caravaggio, Maia, Cosmorama, 2008)



Caravaggio, 'Cabeça de Medusa'
Óleo s/ tela colado sobre disco de madeira de choupo, 60 x 55 cm
Galleria Degli Uffizi, Florença

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