segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 2

noite de natal de mil novecentos e cinquenta e oito./ se pudesse pedir
o que quer que fosse/ pediria uma cria de cão,/ no centro da sala ergue-se
a instalação do presépio,/ o meu pai rosna,/ os meus olhos seguem
uma ferida na luz,/ uma ferida nítida que sulca a sombra como uma ameaça.

escrutino a cama humilde e os animais apostólicos,/ não entendo
o amparo ansiado e o desvanecimento,/ sei,/ de súbito,/ como ignoro
o mundo e a manhã é indiscernível,/ como paira,/ aqui,/ a ansiedade
e a dor,/ enquanto tudo corrobora o prodígio,/ e uma árvore

cresce desmesuradamente para dentro da terra./ não sei como se nasce
e morre,/ ignoro quem sou,/ onde estou,/ para onde vou,/ num friso áureo,/
os anjos/ constrangem-me à prece inusitada,/ e evoluo no sentido do silêncio/
para presumir a sagrada obstinação de um amor/ que não entendo,/ jamais entenderei./

quero uma cria de cão neste natal longínquo,/ se pudesse pedir o que quer que fosse/
pediria que me levassem pela cidade para ver a noite sobre os telhados das casas,/
onde a instalação do inferno é uma encruzilhada e nada dista do rio/
e das suas têmperas escarlates,/ como barcos perdidos da redenção da maré./

assim,/ aguardo, apenas./ o milagre é esta provisão de tempo em cima da mesa,/
um burro e uma vaca enredados num caminho de areia,/ estéril,/ com o meu pai
a rosnar,/ sempre a rosnar,/ enquanto a casa se enche de clarões,/ e alguém demanda
a estrela da tarde,/ a estrela da manhã,/ a estrela de cinco pontas,/ a estrela polar.

nascer para morrer,/ eis o que me dizem./ sou pequeno demais para entender
o que oiço,/ mas aguardo,/ ainda,/ que haja luz na luz,/ e tudo se amplie em cada brilho,/ embora nada saiba da perversão premeditada e Deus esteja,/ como sempre,/
num abatimento contínuo/ aqui,/ ali,/ em toda a parte,/ na escura cruz,/ que alguém

quebrou,/ há muito,/ muito tempo./ é noite de natal/ esta noite,/ uma noite
de alucinação e delírio,/ quero uma cria de cão e alguém morre na casa adjacente,/
o meu desvario é não saber como saber o que quer que seja a eternidade,/ e como a luz se enreda no coração porque alguém nasceu,/ alguém pode chegar a qualquer momento/

com os seus cânticos idólatras, / o perdulário resgate./ se pudesse pedir o que quer
que fosse/ pediria para ser uma criança inocente/ sem hipótese de fuga,/ quero uma cria de cão,/ o meu pai rosna,/ quero a celebração deste natal/ sem transacções de mirra/
e incenso,/ quero,/ no espírito,/ uma ferida mortal para que a noite não seja senão breve

e o meu pai rosne com fulminante exaltação,/ e eu,/ seu filho,/ mais não possa
que contemplar todos os lados da insatisfação/ e do castigo./ nascer para morrer,/ eis
o que me é dito,/ neste rebanho vou/ para que a adoração progrida em silêncio/
sobre todas as encruzilhadas do mistério/ e eu cresça e diminua/ sobre a natividade

como há-de uma crisálida crescer,/ em metamorfose,/ enquanto na cama adjacente
a morte recrudesce,/ e uma constelação demarca a despedida infindável,/ a inclemência
certeira,/ a inquietante armadilha de estar viva,/ ainda,/ a dívida,/ a dádiva/
por que o meu pai rosna./ almejo/ a uma cria de cão,/ uma cria negra de cão,/ porque

ignoro como se nasce,/ como se morre,/ para onde vamos,/ e a multidão,/ ululante,/ 
com os joelhos em sangue,/ pode,/ ainda,/ vir aos passadiços do mundo esperar,/ impacientemente esperar,/ apenas,/ que a noite,/ esta noite,/ dissipe o temor,/
a amargura,/ o tormento,/ que,/ como uma ameaça,/ uiva de dentro da terra.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006



Foto: © de Amadeu Baptista



Sem comentários:

Enviar um comentário