Estou a cumprir pena perpétua. Na infância, uns filhos da puta rodearam-me com triângulos escalenos e não pude fazer mais que emocionar-me. Nesse tempo, a minha ocupação eram as luzes coloridas e um rio em que as barcas abrangentes conduziam as almas para o inferno, sem que dessa escuridão se suspeitasse. Nos anos cinquenta a miséria absoluta confrontava-se com um menino inocente, que o alarido dos vizinhos amedrontava, sendo que alguns deles sangravam dos ouvidos e dormiam ao relento sob as árvores, e bebiam até que pelas veias corresse apenas álcool. Com cuidado, olhava-os nos olhos, a fazer do silêncio um primeiro recorte obsessivo de palavras, películas vermelhas que invadiam a nítida frescura do meu pátio. Estava ali e queria persistir, talvez porque pensasse que há lugares ilesos um pouco para além dos gemidos da noite e do chicote com que a turbulência arrasa certas vidas que não podem mais que o pão quotidiano, sobretudo se o desamparo é não o ter. Agir, por essa altura, era crescer, embora o crescimento seja uma fortuna inverosímil, que se pega ao corpo a assinalar o teor que há na dor de modo mais profundo e explícito, em que a morte é como um sinal de perigo, mas não exactamente uma ameaça. Fazia sete anos e era pastor aquando do passamento da mulher amada, a quem chamei avó e sei que é um álamo verde nestas margens em que me reduzo a pó nesta memória de a lembrar agora a inscrever nas praças do seu tempo um meneio escandaloso de passar por elas com os cabelos soltos e a anca em fogo. Compôs-se então de treva a claridade e aprendi a ler. Foi-me tormento a escola e o terror de ter por mestres gente que batia nas crianças e andava curvada sobre o tempo que se estendia cinzento sobre os dias, sem qualquer alegria que a tristeza anódina dos que perderam para sempre a macieira mágica. Cheguei a presumir que nos temiam, sendo as nossas certezas tão escassas mas tão vociferantes essas figuras que nos faziam crer que compensava o crime de nos manterem reféns no estrado, completamente prontos para a impunidade de uma régua mortífera nos nós dos nossos dedos. Mijávamo-nos de pavor pela violência inumerável da aprendizagem, onde o fulgor coalhava com notícias do céu tão abstractas como o facto de sermos navegantes há tanto tempo que não o lembrávamos. Até que um dia, já adolescente, descobri o poder da poesia que, a par com o mar, aprendi a fitar com imprudência, por serem revoltosas essas águas em que o dia e a noite se confundem. Era essa imprudência o desassombro de ouvir o longínquo e o genesíaco, com homens e mulheres a recortar-se da imensidão dos tempos, a cantar a dolência e o sublime, a invectivar o mistério e a ampliar o enigma que há entre os enigmas, ou o surto de sentidos que, num sopro, agrega ao infinito o infinito, para que haja mais infinito no sentido. No meu país, então, grassava a guerra e para os da minha idade só havia essa promessa como compromisso, que abarcava a morte pela extorsão e a posse da terra, e a escravatura de outros homens em tudo iguais a nós. Longos anos durou essa aflição, até que um dia o mais cruel dos meses comportou a amenidade esperada, dando à paz um fugaz clarão de expectativa. Por essa estrada ia a descobrir os gregos e não tardei a ver com que punhais trabalha a insídia e aos abutres se não devem confiar os braços levantados para a prece comum. Os pobres estão mais pobres do que nunca e despojado o mundo pelos roubos que, entre acerto e desacerto, cada um de nós vai consentindo, por cobardia, fraqueza, ignomínia. Ainda assim eu quis resistir. E li mais gregos, e instintivamente olhei o mar. E fui, contra a corrente, nessa corrente de vozes subterrâneas e ventanias densas que me tornaram órfão de tudo quanto amei e perplexo amante de um recontro tenso com o poema oculto no poema em que, mais do que o amor, surpreendi a morte com que, fora de mim, por dentro me revejo, agora que, ungido pelo vazio, só mesmo a poesia sobrevem. Triângulos escalenos trouxeram-me a este cais e, tal como na infância, uns filhos da puta me rodeiam. Não posso fazer mais que emocionar-me. in Antecedentes Criminais Antologia Pessoal 1982-2007, V. N. de Famalicão, 2007 |
terça-feira, 7 de fevereiro de 2012
Pena Agravada
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Olá Amadeu
ResponderEliminarNem tenho palavras para descrever o assombro que sinto perante o que escreve. Realmente é entre os grandes que se distinguem os maiores.
Também gosto muito de escrever mas sei que nunca chegarei a este nível.
De qualquer forma tenho pena que não tenha visitado o meu Blog. Quem sabe um dia me possa dar esse prazer!
Um abraço
MariaJB
Ainda volto pois gostaria de lhe perguntar se autoriza que eu publique no meu blog, com os devidos créditos, poemas seus?
ResponderEliminarMuito obrigada
MariaJB