quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 7

por onde tenho andado que estou em todo o lado,/ rosno eu,/
que me confundo/ com o cão que rosna a meu pai,/ não sei, respondo
eu, adormecido./ neste deserto vale o que vale/ a pena, ir em frente,/
e nada mais há para imaginar/ no muito imaginar.

então, regrido,/ regrido o mais possível./ e a cidade abre-se ao contrabando,/
o comboio de mercadorias atravessa o túnel e vejo,/ sinto,/ um tremor de terra./
quando a terra treme não há como fitar,/ a incerteza é um bem
colectivo e não é possível agarrar com força o olhar que há no vazio.

chovia,/ chove torrencialmente./ as raparigas,/ diz-se,/ deitam corpo/
e o mais que me lembro é do cheiro da terra e dos seus corpos,/ elas são
como terra a tremer,/ todas ancas e lábios,/ seios e cheiros/ e não posso/
fazer mais do que ir com elas,/ em frente,/ com as mãos acossadas/

com o corpo como um uivo./ estou a vê-las chegar/
em bandos/ pelas ruas/ e é de noite./ e eu esculpo a mediação do desejo,/ o meu pai
aguarda,/ apenas,/ o instante do percalço,/ está ali,/ no desvão,/
e vai chegar com a tragédia sobre os ombros e a boca hiante/ a bradar.

onde estive que não estive nunca, não sei./ nesta constante aforro a vida,/
a noite entrega a primícia no largo subjacente ao pequeno cais,/ as raparigas
chegam e sobem aos muros, saltam fogueiras,/ eu chego e espio/ a expiação,/
de uma curva apertada vejo tudo o que se passa sob os arcos e a igreja

de são pedro,/ os que atiram fitas amarelas e azuis a quem vai,/
os que vendem uvas e figos maduros,/ os que vão partir para a guerra/
e toldam os olhos com a dissipação,/ a evanescência./ um deles há-de dizer
como cortou a cabeça a um homem, os testículos a outro,/ como se lhe gelou o sangue

quando matou assim,/ enquanto, meu pai,/ do passeio das virtudes,/ observa tudo,/ ubíquo./ onde me reconheço, transito./ sou o cão que sobe a rua do gólgota a altas/
horas da noite,/ sou uma sombra de mim mesmo a arquitectar um sonho de
    maquinações
e rupturas,/ Deus não está em toda a parte como meu pai,/ se Deus houvesse

explicar-se-ia a sucata,/ o esgoto a céu aberto,/ a imperfeição fidedigna de quem/
dorme na rua por não ter milagre a que acolher-se,/ tal como não poderia ver-se
uma assembleia de pobres a indagar o esconjuro da morte,/ os seus périplos fulcrais,/
a malga exígua de exíguo caldo,/ o sangue/ gelado./ onde estive é o demónio que está,/

eu sei,/ entre nós há um pacto ancorado,/ duas presenças fortes,/ o meu pai
usa o cinto no meu corpo/ e sou um ser de angústia neste horto imenso,/
é nesta árvore do jardim da cordoaria que enforcam os celerados,/ os condenados,/
na desonra é como heróis que morrem os abandonados./ de novo falo na ancestralidade

onde todos fomos bons,/ insuspeitos,/ insepultos./ estou em todo o lado
porque há um olhar a que é impossível fugir,/ as raparigas vêm da fonte taurina
e têm as mãos/ a arder,/ o meu pai circunscreve/ um território inexpugnável para seu,/
meu/ e nosso deleite,/ estamos na primeira linha dos que regridem para o túnel,/

uma escadaria infinita leva-nos aonde nunca estivemos,/ os cães rosnam
e a caravana adensa o espírito dos que nos malograram,/ gente ímpia
que,/ pelo amanhecer,/ reconhece o caminho de casa/
e faz do mundo uma matéria densa e friável,/ a tremer, debaixo dos pés.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006


Foto: © de Amadeu Baptista

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