quinta-feira, 1 de março de 2012

Os meus (mais belos) poemas sobre o Porto - # 8

tarde de mais,/ talvez,/ venho a saber o que seja/ a rotação da terra.
no final da manhã,/ olho o rio,/ o rio,/ este princípio de sabedoria e de incerteza./
tudo à minha volta é como um sonho/ e uma vertigem./ há sempre,/ aqui,/
um caminho de árvores entre a neblina,/ muros brancos,/ vozes,/ muito ao longe,/

e uma ferida incandescente,/ sinais. a rotação da terra é,/ entendo,/ nietzsche, próspero,
tudo o que vem da infância e atravessa/ a casa,/ os sons longínquos,/
a chuva nas janelas,/ a noite que amplia o extenso temporal com os berros
dos gatos e os uivos,/ os uivos fundos,/ lacustres,/ dos lobos.

vejo um caminho de pedras,/ um caminho de perdas./ em volta
tudo é desassossego,/ e uma sombra,/ alta,/ bate nos vidros da sala,/
embaraça as mãos,/ estilhaça. com o poder da noite/
e o demorado êxtase dos relâmpagos,/ vivos,/ a rasgar

o centro da escuridão,/ sinto que alguma coisa escava o meu coração,/
sombra a sombra,/ brilho a brilho,/ andaime a andaime,/ fogo a fogo,/
e subo/ e desço a cruz,/ a encruzilhada à minha frente,/ sombria,/
enquadrada pela luz,/ intratável e ténue,/ que vem da vide,/ o vaso

roxo,/ a cristaleira em que o pó delimita os detalhes
da demolição./ esta cidade é a rotação da terra,/ eu penso,/ o rio
uma metamorfose,/ os barcos o sentido/ em que a irredutabilidade
evolui,/ como uma marca na face,/ um corte de navalha

que expande o rosto até à ruína,/ numa corrente de vultos.
há,/ na mesa,/ uma nódoa,/ o meu pai hoje,/ já morto,/ bebe
em silêncio,/ eu,/ como ele,/ sorvo o real,/ agora,/ e intuo que nada é real,/
porque há,/ aqui,/ papéis em desalinho,/ lápis e tesouras,/ uma chávena,/

uma chave partida,/ um copo sujo de vinho, abandonado,/
enquanto eu,/ sempre quero o que não quero,/ e mais não faço,/
sempre,/ que permanecer,/ irrisório e frágil,/
para que não aconteça senão o que,/ neste momento,/ tarda,/ ainda.

vejo o estremecimento das mãos de meu pai,/ a toalha,/ alvíssima,/ adamascada,/
flutua sobre a minha cabeça,/ e sei,/ de súbito,/ que a rotação da terra prolonga
as reconciliações do mundo,/ e estou preso,/ assim,/
a um acerto e a um desacerto,/ diria,/ de despojos,/ um cerco

onde há uma avaliação absoluta de pontes,/ em que tudo prefigura
a continuação do fim,/ entre constância e assombro,/ memória e declínio,/
sendo os muros o que se enlaça e perdura/ na geografia
imprecisa/ da infância,/ gravada sobre a perda,/ a perda,/ blake, pavese.

eis,/ de novo,/ o milagre do rio,/ a rotação da terra
converge para todos os lugares e nenhum,/ diverge/
onde o real antecipa a destruição/ e a destruição antecipa
o aniquilamento,/ uma nódoa na toalha adamascada,/ alvíssima,/

que interfere,/ intensamente,/ com a trasladação,/ o seu registo
na imensa caixa negra desta terra queimada,/ este rio, sem fim.


in Negrume,  & Etc, Lisboa, 2006


Foto: © de Amadeu Baptista

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