terça-feira, 20 de março de 2012

Urbano Bettencourt


Urbano Bettencourt, poeta convidado


3 POEMAS

Poema  por receita
A economia do lirismo
(diferente dos  lirismos
da economia)
dirá  dos materiais
e do seu uso  a justa medida,
as proporções da mistura,
o tempo de confecção
(nove anos, dizia   Horácio
muito antes ainda 
do fast food e do take away).
A patella, por exemplo,
trazida por Lineu  ao cardápio
do poema,  rimaria bem com aguarela
(fosse  eu o Cesário!)
ou  com a panela em que a mão  experiente
do escrevente
lhe juntasse   o sal, a salsa, o alho
a cebola e  a pimenta
para um vulgar poema de lapas com molho Afonso.  
Da cozedura em lume brando nada se dirá,
porquanto em brando lume se consome quem estas palavras
escreve tão longe das coisas e dos seus cheiros
e a quem sobra apenas o ofício de poeta receituário
e os despojos de um poema laparoso.

(Porto, Agosto de 2011)



Antero
                                                                    Para  Valentinous Velhinho
O reino que  procuro é perdido
e vago, sombra de um sonho inquieto
em que me invento e me desfaço.
Ilhas que foram minhas, as despeço

por sobra de matéria e de concreto
— estorvo de lava, sal, um sol finito
ferindo o puro brilho da Ideia.
Ao rosto que desenho sobre o vidro

responde um outro de perfil incerto,
anjo, demónio, cavaleiro ou morte.
E, neste jogo a que me entrego e lanço,

um fogo me consome em seu amplexo:
fosse eu como os demais, suor e sangue
e sexo!


Amanhã não farei
Amanhã farei vinte e cinco anos
Valentinous Velhinho

Amanhã não farei vinte e cinco anos
nem mesmo os trinta e sete que o Vadinho
celebrou com música russa
e açoriana também, à  luz de um bolo
crioulo.
Amanhã ter-me-ei por certo abandonado
ao vagar dos dias
e apenas pedirei o dom de uma soleira
longe das cidades, na Calheta
ou num Calhau qualquer:
aí me será revelado, espero,
o mistério das marés e das sementes
e medirei com os braços a idade
dos montes;
aí aguardarei que Zaratustra
ressurja do pó dos caminhos
e beba da minha água antes de anunciar
a  morte de Caeiro por melancolia
incurável.



Fotos: do A. © Sara Bettencourt;  ilustração dos poemas: © de Amadeu Baptista

Urbano Bettencourt, (Piedade, ilha do Pico, 1949). Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa.  Lecciona  na Universidade  dos Açores desde 1990. Tem  dedicado particular atenção às literaturas insulares, sobre as quais já proferiu conferências  em Cabo Verde, Madeira, Canárias e Açores. Colaboração   em revistas da especialidade, no país e no estrangeiro.  Poesia e narrativa:   Raiz de Mágoa (1972); Marinheiro com residência fixa  (1980);   Naufrágios Inscrições (1987); Algumas das Cidades (1995); Lugares  sombras e afectos (2005);  Santo Amaro Sobre o Mar  (2005; 2.ª ed, 2009); Antero (2006); Que paisagem apagarás (2010) . Ensaio:  O Gosto das Palavras, 3 vols. (1983, 1995, 1999); Emigração e Literatura (1989); De Cabo Verde aos Açores – à luz da «Claridade  (1998); Ilhas conforme as circunstâncias (2003).


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