sábado, 3 de março de 2012

Soledade Santos


Soledade Santos, poeta convidada


3 poemas:


ALGUMA COISA

Abrimos caminho para as velhas casas
tal como para as pessoas.
Algumas aceitam-nos e deixam
que desvelemos esconsos
os murmúrios de vida
e a argamassa do tempo.
Quietas por trás das roseiras
parecem dormir.
Mas podem ser os acidentes
visíveis nos caminhos
de quem nunca regressou.

Assim a casa do cimo.
Em volta da mesa da cozinha
sentam-se só mulheres.
E no cheiro da salsa que se pica
miudinha para os ovos verdes
alguma coisa ali se aquieta,
alguma coisa que tem raízes
numa parte ignorada,
numa outra casa onde imperava
sobre um bando de rapazes
uma rapariga que não tinha
mãe irmãs nem primas.

Não se pode mudar de luz
nem outros espelhos além dos primeiros
nos acolhem o rosto.
Mas há casas assim densas
onde os cheiros
e a vibração das madeiras
e a gota que pinga
da torneira mal fechada
nos vestem
contra as injúrias do tempo e o frio
que nem sabíamos sentir.


(in Quatro Poetas da Net, 2002 - com alterações)





RETRATO

Comecemos pela minúcia dos dedos
pelas magnólias verdes dos teus olhos castanhos.

Contemplemos todas as batalhas
efémeras que perdeste
e os arroios que então se abriram
na espessura do teu corpo
e a boca lavrada pela sede incessante
e a glória da voz em vitral lento.

Consideremos também o teu nome
e para ele haverá que achar metáforas
estrelas em céu de Agosto.

Por fim busquemos no fundo
da memória a chave
para o texto que ainda não decifrámos.
Enquanto isso
a ninguém direi dos pássaros
que moram na tua cintura.

(inédito)




DISCIPLINA

Tantas horas as palavras afloram
os dedos e a comissura dos lábios
e se afogam no silêncio.
E o tempo vai. Fogachos brilham
e extinguem-se. Extingo-os. Memórias
acutilam a decisão. Repito gestos –
refaço o perímetro do mundo.

(inédito)


Fotos ilustração dos poemas: © de Amadeu Baptista

Soledade Santos nasceu no Sabugal, Guarda, em 1957. Reside no concelho de Alcobaça, onde é professora. Participou nas colectâneas Quatro Poetas da Net (2002), e Divina Música (2010). Tem poemas publicados na revista DiVersos, edições Sempre-em-Pé, e em vários sítios da internet. Em 2010, publicou o livro de poemas Sobre os teus pés a terra, pela editora Artefacto. Colabora no blogue da revista Ágio e no blogue de tradução Mudanças e Companhia.

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