quinta-feira, 26 de julho de 2012

João Rui de Sousa


João Rui de Sousa, poeta convidado

TRÊS POEMAS


FRIO


Eis o estampido
que em noite gelada
em mim recolheu.


O frio era tanto
que o gelo estalava
com frio também.


A névoa era muita.
E um barco partia
bem colado à bruma.


E a morte seguia
com o frio que fazia
em cerco de espuma.


O gelo era tanto
que a mão do quebranto
a mim se estendeu.  


Sentado num banco
o frio era tanto
que o frio era eu!







NÃO, NÃO É POSSÍVEL


Não – não é possível qualquer sono
com versos que não rasguem bem por dentro
a raiva das ruínas que se bebem
com ceifadas luas ou rosados sonhos.


Não – não é possível esse vento
que não levasse o ar até à vida:
fosse ela flor em crista de subida,
como alor de criança em crescimento,
fosse ela a faca lenta da descida
que vai de um fio de água ao desalento.


Não – não é possível ser esquecida
quanta matéria voga em cada dia,
o quanto fio perfaz nossa existência.







IR PELO MAIS LARGO


Eu sonho-me eu sobro-me eu excedo-me.
Jamais permitirei que me aparafusem
à parede das restrições.  Jamais me coibirei
de colorir com as cores mais vivas os vidros
interiores. Jamais impedirei a explosão
contínua de mim mesmo (ou seja: de todo 
o granito que aí se acoite).


Irei pelo mais largo,
pela máxima amplitude de voz
e de palavras, pelos horizontes
mais fundos e verdejantes, 
pelo sagrado voo e pelas pastagens
de uma excelsa ciência:
a de nada trair de essencial
à possível harmonia do mundo,
e à mais fraterna visão libertária.





Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: (incluídos no livro Quarteto para as Próximas Chuvas. Lisboa, Publicações D. Quixote, 2008) © João Rui de Sousa


João Rui de Sousa nasceu em Lisboa, em 1928. Depois de concluído o curso técnico agrícola pela Escola Prática de Agricultura D, Dinis (Paiã, Odivelas), licenciou-se em C. Históricas e Filosóficas, pela Faculdade de Letras de Lisboa.  Co-dirigiu a revista Cassiopeia (1955), onde fez a sua estreia literária. Tem colaborado em inúmeros jornais, revistas, antologias e volumes colectivos.   Para além de alguns volumes de natureza ensaística, publicou, a partir de 1960 – em que fez sair Circulação e A Hipérbole na Cidade –, cerca de dezena e meia de livros de poesia. À sua Obra Poética (2002), onde reuniu todos os livros editados até 2000,  foram atribuídos os prémios da Associação Portuguesa dos Críticos Literários e do PEN Clube Português. Tendo posteriormente publicado Lavra e Pousio (2005) e Quarteto para as Próximas Chuvas (2008), a este último volume foram atribuídos os prémios «Teixeira de Pascoaes» (C. M. Amarante) e «António Ramos Rosa» (C.M.Faro). No ano em curso (2012), a Associação Portuguesa de Escritores conferiu-lhe,
pelo conjunto da sua obra, o prémio «Vida Literária». 

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