terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Eeva Kilpi


POEMAS DE EEVA KILPI


Diz-me se incomodo,
disse ao entrar,
porque me vou imediatamente.

Não apenas incomodas,
respondi,
como pões de pés para o ar toda a minha existência.
Bem-vindo.

                                               Laulu rakkaudesta, 1972


Precisamente quando tinha aprendido a viver sem ele
veio-lhe à cabeça esta ideia:
eu não renuncio a este homem.

E os lençóis rebentaram em flores.
“ Isto é a realidade”, disse
e os sonhos empalideceram.

Tal era pois a força sob os olhares
que durante anos educadamente
nos tínhamos mutuamente lançado.

                                               Laulu rakkuaudesta, 1972



 Mal acabara de pronunciar: “ Agora só faltam os morangos”
já estava a correr para a desprezada horta das traseiras
    da casa
onde recolheu um punhado de pequenos morangos silvestres
antes de ter acabado de comer o yorgute:
acabavam de amadurecer.
Tem cuidado com o que dizes, disse, agora tudo se transforma em realidade.

E ele teve cuidado.

                                               Laulu rakkaudesta, 1972


Dentro de nós há agora uma poderosa carga
de alegria, amor, bondade e força
para partilhar também com outros.                                                                              

Sim, disse ele, tu és o ponto de inflexão na minha vida,
tu abriste os caminhos obstruídos dos meus sentidos.
Pela primeira vez compreendo a minha mãe,
para não falar da minha sogra,
os meus parentes quase os amo.
e o melhor de tudo, a minha mulher já não sabe a madeira:
que festa temos vivido.

Laulu rakkaudesta, 1972


Deixar-te-ias foder por duas mil coroas? perguntou-me
na paragem do autocarro às 0.42
rodeados por ruas vazias e congeladas.
Primeiro neguei com a cabeça, mas logo lhe disse:
Por dinheiro, não, mas se passas o aspirador e areias os pratos…
Então ele, por seu lado, abjurou
e deu a volta abatido por seguir o seu caminho.

Laulu rakkaudesta, 1972

O amante encontrou a origem do cancro
no peito dela:
salvou-lhe a vida.
O marido reabilitou-se,
deixou a bebida,
ficava em casa à noite.
Os filhos começaram a lavar os pratos.
Floresceu a vida familiar.

O mudo herói do leito clandestino anda triste.
Que vida tão ingrata!

Terveisin, 1976


Que alguém envelheça não importa nada
mas como suportar
ver que começa a envelhecer o teu jovem amante?
Calvície. Barriga. Tédio.
Por que não me abandonaria a tempo?
Eu já tinha rugas quando nos conhecemos,
lembrava-lhe a mãe,
proporcionava-lhe uma sensação de triunfo e de assombro
ainda aguentava com uma desgastada assim.
Mas agora estão fundas as rugas
e para isso sim não estou preparada.
Quando penso que poderia ter tido a lembrança
de um homem jovem sem estragar…
E não é só isso.
Todas as noites me tortura a ideia de que ele,
ainda mais deteriorado,
provoque assombro junto à minha tumba
algo distante, abatido,
dissociado, e que ninguém compreenda o que eu
vi uma vez nele.
E talvez eu tão pouco poderia entendê-lo,
ao fim e ao cabo sou um ser humano.
Quando a terra tocar o meu ataúde uma manhã fresca de orvalho,
quando as pás soarem,
quando os jovens estudantes da calça curta
me forem atirando terra…

Tu ris, morte,
mas eu obviamente devolvo-te o sorriso.

Ennen kuolemaa, 1982



Quando alguém já não tem forças para escrever, tem que recordar.
Quando alguém já não tem forças para fotografar,
tem que ver com os olhos da alma.
Quando alguém já não tem forças para ler,
tem que estar cheio de histórias.
Quando alguém já não tem forças para falar,
tem que ecoar.

Quando alguém já não tem força para andar, tem que voar.

E quando chega a hora,
tem que desprender-se das recordações,
dos olhos da alma, deixar de sussurrar,
calar-se e fechar as asas.

Mas aconteça o que acontecer, a história segue, segue
Ennen kuolemaa, 1982



UMA LENDA

Ao entardecer
o Redentor dá uma volta pelos currais,
pelos estábulos, pocilgas, aidos e galinheiros,
quer dar uma vista de olhos ao lugar onde nasceu,
saudar os animais
entre os quais certa vez adormeceu
e teve em cueiros o seu primeiro sonho.
Mas tudo mudou.
Os animais contemplam-no através de grades,
humilhados no seu cativeiro,
com angústia e desespero nos olhos.
Reconhecem-no, gritam-lhe:
Volta a nascer, Redentor,
nasce para nós.
Os homens levaram-te.
Cuidaram-te bem?

Animalia, 1987


As experiências com animais são necessárias, dizeis,
mas eu digo:
Os resultados só demonstram como reagem os animais
à sobredose
de insecticidas, de cosméticos, de medicamentos,
encerrados em jaulas
sem exercício, sem liberdade
e em espantosas condições de vida.
Que demonstra isso?
Que utilidade reporta?
Respondo: só podereis dizer «investigação».
Que não tireis a palavra investigação da boca.
A investigação demonstrou.
E «nós, os investigadores».

Antigamente dizia-se que os animais não sofriam,
agora diz-se que os animais padecem de stress.
Não se pode usar assim o idioma,
para negar os factos.
Os animais sentem medo e desprazer,
pânico,
os animais sentem angústia.
Sentem dor. Sentem-se mal.
Esperam todo o tempo que deixe de doer-lhes,
que alguém chegue e os liberte,
os solte,
os deixe sair para o ar livre,
para a sua toca, o campo, o prado, o bosque.
Mas não aparece nenhum libertador. Chegam outros.
Os animais utilizam todo o seu tempo e toda a sua energia
à procura de uma saída.
Fugir, fugir, fugir, diz o rato em cada movimento.
Os cães caem na depressão.
                    Envergonham-se da conduta do homem.
Ou enfurecem-se, enraivecem-se,
e deita-se a culpa à sua natureza.
Os gatos. Cheios de desespero.
Os coelhos,
cujos olhos se oferecem no altar da beleza feminina.
Mulher, pensas nisso?

Humanidade, desperta!
Torturados, declarai-vos insubmissos!
É a hora!

Animalia, 1987


Bem, se na verdade
queres um confissão,
aqui vai:
tive trinta e seis amantes.
Bem, sim. Tens razão,
são demasiados.
Tivessem-me bastado trinta e cinco.
Mas, querido, o trinta e seis
eras tu.

Animalia, 1987


Versão minha - © Amadeu Baptista



Eeva Kilpi (1928). Nasceu em Hiitola (na Carélia, hoje território russo). Licenciou-se em Letras e trabalhou como professora de inglês. Foi presidente do PEN finlandês. Além de poesia, escreveu numerosos contos e romances.

4 comentários:

  1. Obrigada por me abrir esta janela sobre a autora que não conhecia. Levo daqui uma enorme vontade de conhecer a obra.

    Cumprimentos
    Lídia

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  2. Lindo Amigo não conhecia mas adorei o meu muito obrigado.
    Um abraço
    Santa Cruz

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  3. sempre uma lufada de ar, esta Eva com dois 'és' :-) Obrigada! mt

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