sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Fernando Esteves Pinto





Fernando Esteves Pinto, poeta convidado, três poemas:




O TEMPO QUE FALTA

I
Vê como as coisas são. 
Chega um dia e o passado não falha 
a sua correspondência moral. 
Consagra-me o dever de confirmar reconhecimento
sem que a memória confunda o que foi as minhas regiões perversas
e o que representa agora estes fantasmas do presente.

Como se o tempo escrevesse cartas de despedida
e eu sempre fingisse exílios inocentes
rendida como estou ao monólogo do corpo
e tão sensível e fragmentada como um diário efémero.

II
Como esta parede que larga a sua tinta
também a minha pele deixou de ilustrar 
qualquer frescura, tão ferida e derrubada
se parece que já nada testemunha
do artifício que eu usava quando escoltada
por cosméticos e fantasia 
tomava em minhas mãos o passaporte da boémia, 
por sombras que assinalavam a melhor direcção, 
o mais seguro desamparo do meu tesouro, 
sempre as mesmas condições e renúncias
que acabavam em contrato de desespero e hemorragia.

III
Vêm visitar-me e com elas trazem
As misérias por onde passaram.
Desfiam-me histórias da última cartada,
amparadas pelas rédeas da sorte  
e suas defesas artificiais. 
Romances impetuosos 
onde a vida se divide ao meio,
entre aventuras e jogos de cintura 
que exigem emotiva habilidade.

Ouço-as em duelo acusando as causas 
de tão intrigantes biografias:
uma lâmina urgente que afia o perigo
a roçar o peito. A presença de uma dor
que finge alívio no sigilo dos seus compromissos.  
E a desdenhosa felicidade amputando a esperança
que as conduzem no regresso.

São as meninas da ronda, parque, nocturno, 
medo e paraíso. Vivem como as nuvens 
que se desfazem milagrosas no mais fundo dos céus.
Sei que fogem do mesmo que em mim foi infortúnio: 
trocar um dia por outro dia e não sentir a carga 
que se acumula pelo tempo.



Fotos (ilustração dos poemas): © de Amadeu Baptista

Poemas: © Fernando Esteves Pinto

Fernando Esteves Pinto Nasceu em Cascais em 1961. Colaborou no DN Jovem (Diário de Notícias) e no Jornal de Letras. Em 1990 recebeu o Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura. É publicado em Espanha, México e Marrocos por revistas literárias e editores independentes. Está representado em várias antologias. Em 1998 obteve uma bolsa de criação literária pelo Ministério da Cultura/Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Co-fundador e coordenador do “Sulscrito” – Círculo Literário do Algarve; Projecto Literário Hispano-Luso Palavra Ibérica. Livros publicados: “Na Escrita e no Rosto” (poesia); “Siete Planos Coreográficos” (poesia, edição bilingue, Huelva); “Ensaio Entre Portas” (poesia), “Conversas Terminais” (romance); “Sexo Entre Mentiras” (romance); “Privado” (novela), “Área Afectada” (poesia); “Brutal” (romance); “O Tempo que Falta (poesia); “Identidade e Conflito” (micro-ensaios); “Dispensar o Vazio” (antologia poética).

1 comentário:

  1. [os sólidos testemunhos do tempo

    esse traço da palavra,
    o convulso traço da palavra.]

    um abraço,

    Lb

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