terça-feira, 15 de abril de 2014

Fernando Grade



Fernando Grade, poeta convidado



PIER PAOLO PASOLINI FOI ASSASSINADO
NUMA VIVENDA DO ALTO ESTORIL

Pier Paolo Pasolini foi assassinado numa vivenda
do Alto Estoril.
Jamais em desértica praia italiana
ou nos olhos de quem passa contente objecto
sexual da Via Venetto
foi aqui nesta rua que desce dos Bombeiros
para a praia da Poça da minha infância.


A casa está rodeada de relva por todos os lados
como se fora um barco de cal
uma cisterna pouco nocturna
e então chegaram os bastardos (foram muitos)
com facas
guizos sangrentos    serpentes amestradas
pela boca
todos devagar diante do espelho que
estava quebrado no meio da erva
e desferiram sobre o corpo de Pier Paolo Pasolini
uma flecha venenosa. Mataram-no a sangue frio.
Ao cair da madrugada.
Numa vivenda do Alto Estoril.


Notícias muitas correram mundo
davam-no como morto algures em Itália:
tinha sido esmigalhado por uma rapariga que vestia de rapaz.
Penso que os jornais e as televisões endoidecem
de uma doença réptil como a magia dos trópicos:
porque Pier Paolo Pasolini morreu e
morre ainda todos os dias aqui
na minha terra (um pouco acima do Tamariz)
numa rua que desce dos Bombeiros
para a doméstica praia da Poça.


Não se esqueçam:
ao sapo coloca-se-lhe um cigarro na boca
até rebentar.

Estoril – Verão 1976
(in livro de poemas ‘Serenata ao Diabo’. Edições Mic, Estoril, Abril de 1978)





OBRAS NOCTURNAS
(PLANO)

“O direito à mentira é a melhor arma de defesa pessoal.”
                                               (Almada Negreiros)

O empreiteiro está autorizado a modificar as paredes interiores onde por
baixo o fogo nasce, mas exijo que os peitoris sejam angelicamente brancos, a pedra
serrada como os dentes das morsas. E os serventes devem deixar voar a alma,
assente em bélica argamassa de cimento e areia.

Mas que cantarias?

A pedra preta e os beijos a utilizar serão de boa qualidade. Prefiro um subtil
isolamento térmico, pode ser com leca, estranhos frutos tropicais e perfumes
austeros (betão celular).

Os pedreiros mais velhos – mestres de ronha, geometria e bagaço – podem
controlar-se nos assobios, nos uivos latinos, perante um magnético, ondulante e
magnífico cu de rapariga sonhador que cruza o chão dos andaimes. No que
respeita a juntas de dilatação, quero falar mais tarde. E os tampos de bancadas?

Aí podemos ser fogosos. Sugiro um assentamento de

tampos de pedra sobre as bancadas da cozinha. Pedra trans-

lúcida. Núbil. Largos tampos onde se acolham fogosas penas

de galinha preta, morangos de Cintra, espargos brancos (sou

doido por espargos amassados no almofariz das tuas mamas), bolo de mel, um
mapa de execução do emboço e reboco interior, três beringelas, um cálice
de jeropiga para tornar mais sádico o puré de castanhas. E sobretudo sentir que
sobre aqueles tampos alargados há-de um dia o teu corpo grácil abrir-se em
roseira para os moscardos que trago comigo. O amor em viagem é para ser feito na
cozinha ou ao sabor das ondas do mar. Na ausência destas, também serve a
banheira atulhada de espumas e champanhe.

            E de noite todos os gestos luzem melhor. Assenta-
-se os bidés com dois furos, munidos com válvula de ruídos
selvagens, sifão inglês e corrente cromados. Prepara-se a
masculina língua de cobra para ser um rodízio nos lábios
carnudos da rapariga a levitar.
            Finalmente, ao abrir do dia, os rodapés serão de
tijoleira cerâmica de barro ruivo, como os teus belíssimos
cabelos em desordem. O cheiro mágico que deixas na á-
gua…
Os quatro quartos, esplêndida a indicação dos porme-
nores, falta apenas a cal, o cheiro da cal a crescer
ao cimo das pernas, e as tuas palavra (em molho tártaro),
palavras densas mas violentas como ranger de pregos.
            Não deixes nunca que te possam esmagar o co-
ração com um pedaço de argila venenosa nu-
ma manta de trapos.

Oeiras e São Julião da Barra – 5 de Julho de 2008

(in livro de poemas ‘Os Mortos Tratam-se Por Tu’. Edições Mic. Estoril, 2011).







O SOM E A PALHA




(Desenho da série ‘Silhuetas Latinas’, de Fernando Grade)





Ouço todas as tardes em Amsterdam
um martelo de plástico
a destruir um muro feito de pedra rija.
Música repassada de água
como os bichos no meio do feno
ou apenas uma romã.
Gesto polaco
algures nas florestas do Norte.
E todas as tardes o martelo vai e
vem sobre o musgo seco.
A pedra, sim, está por baixo e contente,
na sua felicidade de ser pedra
eternamente

Amsterdam – 1971
(in antologia pessoal ’25 Anos de Poesia Antologia 1962-1987’. Edições Mic – Colecção Salamnadra / 12. Estoril, 1988)







UM BARCO DE NÉVOAS VISITOU-ME O SANGUE
(Arte Maior)

Um barco de névoas visitou-me o sangue
e (cada vez mais nocturno) deixou marcas:
são limos, corais, potros, mel de monarcas,
asas de gaivota com que danço o tango.

Corro nesse barco em noites de morango
ilhas onde o sémen se esconde nas arcas,
par’cendo maçãs velhas em vez de farpas,
ó poetas de Bocage a Anto.

Se o barco fugir, perdido no escuro
(o meu olhar seco em forma de pão duro),
venham outras sinas dar-me as mãos em fúria…

Vou ficar no mar, a ver moças de areia,
Coberto de sial nas mamas das sereias,
Farrapo de génio, de sol e luxúria…

(in ‘Os Melhores Sonetos de Fernando Grade’. Selecção de poemas por António Cândido Franco; quatro ilustrações do pintor Artur Bual; Livro comemorativo dos 30 anos de Vida Literária de Fernando Grade – 1962-1992. Edição nº. 72 de Edições Mic/Colecção Salamandra/16. Estoril – Novembro de 1992.)




© dos poemas e do desenho: Fernando Grade




foto de Amadeu Baptista



Fernando Grade nasceu no Estoril (1 de Abril de 1943). Poeta com vasta obra publicada (autor de 30 títulos individuais), artista plástico, cronista, ficcionista e crítico de arte – ‘Jornal de Letras e Artes’, ‘Século Ilustrado’ e ‘Diário de Notícias’. Fez colóquios e recitais de poesia, deu aulas de Literatura Poética Moderna (1977-96), conferências sobre artes plásticas. Inventou o Teatro de Acção (Museu de Angola, Luanda, 1967). Foi um dos criadores e teóricos do Desintegracionismo (1964-65). Foi director da Sociedade Nacional de Belas Artes, membro do seu Conselho Técnico e director-fundador da Associação Portuguesa de Críticos.





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