LUÍS QUINTAIS, POETA CONVIDADO
Ílion
I
O que se conta em Ílion
não é da perfeição
de hexâmetros,
mas da destruição
da cidade,
da impotência de deuses,
homens, bichos.
Padrões
não modelam
sagazmente
a morte.
Tudo é erro, soberba, acidente.
II
Quando Heitor foi morto por Aquiles
e em ira finalmente desatada
seu corpo arrastado ao redor da muralha de Ílion,
uma mudez percorreu o mundo.
De escândalo se arrepiaram os deuses
e as palavras, antes apetrechadas de asas,
cessaram de habitar o nosso sangue
como chama e sombra
do que profetizámos ser.
Sobre a minha mesa está a segura soberania
da violência insistente, nó
que se derrama como líquido metal, negro desígnio.
Porque morremos? Porque matamos
depois do arrepio dos deuses
e dos símbolos sepultados?
Repõe-se a ferocidade em nós,
equilíbrio dinâmico, proporção
que a si mesma se mede e se mutila.
III
Um cavalo fala,
profetiza a morte
de Aquiles.
Depois o dom da fala
escapa-lhe, e o mundo
arrasta-se,
de ira e desespero
contaminado.
Ao instante
entre a fala
do animal
e a mordaça
irremovível,
chamámos-lhe
um dia eternidade.
© Luís Quintais
Luís Quintais, nasceu em 1968. Poeta, ensaísta e antropólogo.
Publicou dez livros de poesia: A imprecisa melancolia (1995), Lamento (1999),
Umbria (1999), Verso antigo (2001), Angst (2002), Duelo (2004), Canto onde
(2006), Mais espesso que a água (2008), Riscava a palavra dor no quadro negro
(2010), Depois da música (2013) e O vidro (2014). Ganhou o Prémio Aula de
Poesia de Barcelona, o Prémio PEN Clube Português e o Prémio Fundação Luís
Miguel Nava. Vive e trabalha em Coimbra. A sua página pessoal na web pode ser
encontrada em: luisquintaisweb.wordpress.com
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