quarta-feira, 2 de abril de 2014

Kate Næss



                                                  Poemas de Kate Næss



P.S.
O testamento está escrito a causa clarificada
há que pentear o cabelo cruzar as mãos
põr-se o espelho em frente à boca sem que embacie
mas após o veneno ter deixado de fazer efeito
levantar-me-ei tirarei a roupa e lavá-la-ei
estendê-la-ei na varanda ao sol
para que vejas que estou em casa

Mørkerommet, 1964


Estamos no caminho
de uma nova e melhor realidade
que parece não estar muito longe daqui
É de esperar que esteja
na proximidade do
que entende o coração

Blindgjengere, 1969



O QUE QUEREM OS BARCOS

Seria maravilhoso sair
com a tempestade e a tormenta como amigos
aliados com as fábricas de névoa
o naufrágio vale-lhes
é isso o que querem os barcos
deixar tudo
fundir-se na sua própria ilusão
de segurança
deitar-se com calma no fundo

Blindgjengere, 1969



INVISÍVEL

Nem impressões digitais no papel
nem despedidas entre as linhas
por isso é uma carta em código

se choras sobre o papel
aparecem as palavras
se não
no faz sentido

Blindgjengere, 1969


UMA CASA

Quase sempre estava escuro lá dentro
O espelho não devolvia as imagens
A janela não testemunhava nem festa nem duelo
Numa divisão as cortinas subiam e desciam
Em outra luz se acendia e apagava alternativamente

Nunca houve sinais de altercação na rua
Ainda que o semáforo abri-se a intervalos regulares
raras vezes tocavam à porta

As pausas fluíam de maneira que não se acreditava que fosse possível
quebrá-las
Os gritos das crianças só baixavam um par de degraus nas escadas
O cheiro a fritos fixou-se na fechadura
Não era nem festa nem dia de trabalho

Quando se entrava
viam-se sapatos e botas
Casacos e jaquetas uns em cima dos outros
O espelho estava abarrotado de imagens
As cadeiras cediam sob o peso
O rádio estava sempre aceso
Cuspia reposições
Na Páscoa apartava-se o pintainho amarelo
Ali estava como uma ridícula promessa de sol e primavera
Há anos e anos

Lá estão
Botas, casacos, vestígios
todos os papéis, as segundas intenções que levavas
O teu pesadelo

Esta é a casa do pó
A vivenda que nunca abandonas
Esta é a moldura do quadro
que se retira cuidadosamente do ar
Aqui fica escrito o teu nome
mais belo que qualquer flor
Aqui se nomeia
com línguas mais cortantes que a faca

Quando morres ali dentro
fecha-se um pouco a janela
Um pouco depois chega o Natal
Abrem-se pastas em forma de coração
Há muitas luzes que se apagam então
Não é nem festa nem confrontação
Mas fora
há grandes fogos artificiais no céu

Blindgjengere, 1969



QUARTA-FEIRA

Alguém tinha cabelo negro e olhos azuis
alguém tinha cabelo ruivo e olhos cinzentos:
era frios
alguém levava chapéu azul e casaco azul e vestido
azul com bolas brancas
alguém  tinha posto o melhor fato
aquilo em que pensavam
não eram questões internacionais
ou problemas nacionais
pensavam o amor

alguém tinha talvez cabelo louro mas estudava
alguém tinha cabelo louro mas trabalhava
alguém que tinha o cabelo louro levava um vestido violeta
a alguém que estudava não lhe deixavam servir o café
alguém que trabalhava queria pôr a mesa
aquilo em que pensavam
não era o amor
mas grandes problemas

alguém tinha feições tristes e olhos frios e estava só
alguém era alto e elegante e tinha olhos indiferentes
alguém dava muitas festas e era agradável
e de estatura média e tinha o cabelo negro e vestia bem
alguém que tinha feições triste e estava penteado porque
alguém que era alto tinha desaparecido
e alguém que era de altura média estava um pouco mais
preocupado que o normal
o que estava só
só pensava
e sentia

alguém que tinha o cabelo ruivo e os olhos cinzentos
alegrou-se porque o que estudava se alegrou
e pensava que aquele que talvez tivesse o cabelo ruivo
tinha a impressão de que aquele que levava o melhor fato
pensava no amor
e tinha a sensação de o que tinha feições tristes
lhe foi oferecido um cigarro por alguém que era de estatura média
e trabalhava e tinha o cabelo negro e estudava mas
tinha problemas por ser alta e elegante
e desapareceu com casaco azul e chapéu azul
e era agradável e dava muitas festas mas
tinha uns olhos indiferentes e punha a mesa só
e tinha na realidade cabelo louro e um vestido de bolas brancas
e era solitária e tinha muito dinheiro
não pensava em problemas nacionais
nem em problemas internacionais
mas unicamente em grandes problemas
pensava no amor
pensava
e sentia

Blindgjengere, 1969



NÃO

Encontra uma casa que não tenha número
numa rua que não esteja desenhada no mapa
Sobe a escada que não tenha degraus
Toca a campainha que não toca
Pergunta pelo porteiro que não abre nem fecha

Volta uma folha que só tem anverso
Esmaga uma flor que é uma página de um livro
Encontra um dia que não esteja no calendário
Escreve uma carta a alguém que não tenha endereço
que seja para alguém
que não entenda o idioma
que seja para alguém que não abra o poema
que não tenha entendido
Isto é para ti que existias
e não existes


Blindgjengere, 1969



Versão minha - © Amadeu Baptista






Kate Næss (1938-1987). Nasceu em Oslo. Trabalhou com o teatro universitário. Estreou-se em 192. Traduziu para norueguês poesia alemã, espanhola e norte-americana.

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