Poemas de Kate Næss
P.S.
O testamento está escrito a causa clarificada
há que pentear o cabelo cruzar as mãos
põr-se o espelho em frente à boca sem que embacie
mas após o veneno ter deixado de fazer efeito
levantar-me-ei tirarei a roupa e lavá-la-ei
estendê-la-ei na varanda ao sol
para que vejas que estou em casa
Mørkerommet, 1964
Estamos
no caminho
de
uma nova e melhor realidade
que
parece não estar muito longe daqui
É
de esperar que esteja
na
proximidade do
que
entende o coração
Blindgjengere, 1969
O
QUE QUEREM OS BARCOS
Seria
maravilhoso sair
com
a tempestade e a tormenta como amigos
aliados
com as fábricas de névoa
o
naufrágio vale-lhes
é
isso o que querem os barcos
deixar
tudo
fundir-se
na sua própria ilusão
de
segurança
deitar-se
com calma no fundo
Blindgjengere, 1969
INVISÍVEL
Nem
impressões digitais no papel
nem
despedidas entre as linhas
por
isso é uma carta em código
se
choras sobre o papel
aparecem
as palavras
se
não
no
faz sentido
Blindgjengere, 1969
UMA
CASA
Quase
sempre estava escuro lá dentro
O
espelho não devolvia as imagens
A
janela não testemunhava nem festa nem duelo
Numa
divisão as cortinas subiam e desciam
Em
outra luz se acendia e apagava alternativamente
Nunca
houve sinais de altercação na rua
Ainda
que o semáforo abri-se a intervalos regulares
raras
vezes tocavam à porta
As
pausas fluíam de maneira que não se acreditava que fosse possível
quebrá-las
Os
gritos das crianças só baixavam um par de degraus nas escadas
O
cheiro a fritos fixou-se na fechadura
Não
era nem festa nem dia de trabalho
Quando
se entrava
viam-se
sapatos e botas
Casacos
e jaquetas uns em cima dos outros
O
espelho estava abarrotado de imagens
As
cadeiras cediam sob o peso
O
rádio estava sempre aceso
Cuspia
reposições
Na
Páscoa apartava-se o pintainho amarelo
Ali
estava como uma ridícula promessa de sol e primavera
Há
anos e anos
Lá
estão
Botas,
casacos, vestígios
todos
os papéis, as segundas intenções que levavas
O
teu pesadelo
Esta
é a casa do pó
A
vivenda que nunca abandonas
Esta
é a moldura do quadro
que
se retira cuidadosamente do ar
Aqui
fica escrito o teu nome
mais
belo que qualquer flor
Aqui
se nomeia
com
línguas mais cortantes que a faca
Quando
morres ali dentro
fecha-se
um pouco a janela
Um
pouco depois chega o Natal
Abrem-se
pastas em forma de coração
Há
muitas luzes que se apagam então
Não
é nem festa nem confrontação
Mas
fora
há
grandes fogos artificiais no céu
Blindgjengere, 1969
QUARTA-FEIRA
Alguém
tinha cabelo negro e olhos azuis
alguém
tinha cabelo ruivo e olhos cinzentos:
era
frios
alguém
levava chapéu azul e casaco azul e vestido
azul
com bolas brancas
alguém tinha posto o melhor fato
aquilo
em que pensavam
não
eram questões internacionais
ou
problemas nacionais
pensavam
o amor
alguém
tinha talvez cabelo louro mas estudava
alguém
tinha cabelo louro mas trabalhava
alguém
que tinha o cabelo louro levava um vestido violeta
a
alguém que estudava não lhe deixavam servir o café
alguém
que trabalhava queria pôr a mesa
aquilo
em que pensavam
não
era o amor
mas
grandes problemas
alguém
tinha feições tristes e olhos frios e estava só
alguém
era alto e elegante e tinha olhos indiferentes
alguém
dava muitas festas e era agradável
e
de estatura média e tinha o cabelo negro e vestia bem
alguém
que tinha feições triste e estava penteado porque
alguém
que era alto tinha desaparecido
e
alguém que era de altura média estava um pouco mais
preocupado
que o normal
o
que estava só
só
pensava
e
sentia
alguém
que tinha o cabelo ruivo e os olhos cinzentos
alegrou-se
porque o que estudava se alegrou
e
pensava que aquele que talvez tivesse o cabelo ruivo
tinha
a impressão de que aquele que levava o melhor fato
pensava
no amor
e
tinha a sensação de o que tinha feições tristes
lhe
foi oferecido um cigarro por alguém que era de estatura média
e
trabalhava e tinha o cabelo negro e estudava mas
tinha
problemas por ser alta e elegante
e
desapareceu com casaco azul e chapéu azul
e
era agradável e dava muitas festas mas
tinha
uns olhos indiferentes e punha a mesa só
e
tinha na realidade cabelo louro e um vestido de bolas brancas
e
era solitária e tinha muito dinheiro
não
pensava em problemas nacionais
nem
em problemas internacionais
mas
unicamente em grandes problemas
pensava
no amor
pensava
e
sentia
Blindgjengere, 1969
NÃO
Encontra
uma casa que não tenha número
numa
rua que não esteja desenhada no mapa
Sobe
a escada que não tenha degraus
Toca
a campainha que não toca
Pergunta
pelo porteiro que não abre nem fecha
Volta
uma folha que só tem anverso
Esmaga
uma flor que é uma página de um livro
Encontra
um dia que não esteja no calendário
Escreve
uma carta a alguém que não tenha endereço
que
seja para alguém
que
não entenda o idioma
que
seja para alguém que não abra o poema
que
não tenha entendido
Isto
é para ti que existias
e
não existes
Blindgjengere, 1969
Versão minha - © Amadeu Baptista
Kate Næss (1938-1987). Nasceu em Oslo. Trabalhou com o
teatro universitário. Estreou-se em 192. Traduziu para norueguês poesia alemã,
espanhola e norte-americana.
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