sexta-feira, 6 de abril de 2012

Margarida Vale de Gato



Margarida Vale de Gato, poeta convidada


2 POEMAS


Intercidades

galopamos pelas costas dos montes no interior
da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir
o tempo
o tempo que os comboios do sentido contrário engolem
do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor

preciso de ti que vens voando
até mim
mas voas à vela sobre o mar
e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu
vou rastejando ao teu encontro sobre os carris faiscando
ocasionalmente e escrevo para ti meu amor
a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas
cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora
eu sei
as palavras valem menos do que os barcos

preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo
de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem
de voar e ainda assim do outro lado
o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar
a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há
comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas
debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas
meu amor
eu fumo um cigarro entre duas paragens leio
o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as
as pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu
amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes
dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração
do mundo
à noite no teu corpo meu amor eu
também sou um barco sentada sobre o teu ventre
sou um mastro

preciso de ti meu amor estou cansada dói-me
em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim
desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te
meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos
depois de cem anos voltaremos a ser barcos
eu estou só
Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos
eucaliptos intermináveis longos e verdes
comemos eucaliptos entremeados de arbustos
comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor
comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia
a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes
comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal
é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos
o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo
o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos

meu amor para sermos barcos à noite
à noite a soprar docemente sobre as velas acesas

barcos.


in Mulher ao Mar, 2010



Amtrak

Somando tudo já dei um par de vezes a volta
ao mundo agora outra vez enamorada outra vez
desengomada e tão de veludo e tensa e tenra
e outra vez um muito semelhante cansaço de urgência
impossível não comparar este relato de me deslocar
até ti com um poema de amor de há dezasseis anos
escrito em turbilhão e certeza onde maldizia
de avaro e com que ironia hoje o tempo

e pensar isto é pensar que muito se medita mas já se prevê
que não é desta que termina a correria
é Outono
outra estação outro país outra idade tu
falas outra língua tens a pele anilada
que herdaste de pais que vieram da Índia
e esta carruagem que me leva já vem do Canadá há
o Hudson que bordeja em serpentina sem eucaliptos nem igrejas
desta vez como num sonho crepitante há
folhas de ácer lembrando nos três dedos
patas de asas curtidas em peles secas e ocres e rugiriam
se pisadas
embora condiga a paisagem com mais doces imagens
de resto que perfeito isto até o frio
cá dentro não se sente e coa-se o ocaso
e eu deslizo para ti e um outro continente há
tantas horas viajo que quase tudo esqueci
menos o quanto abençoadamente
menos esta ternura coberta de fadiga
mesmo se suspeite
que sub-reptícia mova a vertigem e o impossível não dure

e de repente tenho vinte e um anos outra vez há
pouco tempo sou outra vez maior
visto que chego esta noite e tudo indica que faremos amor
voei sobre a água até ti suporto este atrito até ti
devoro as copas do ácer no Outono para me deitar junto de ti
contanto desta vez adivinhe – ou já percebi –
que são lindas promessas mas dificilmente nos perseguimos
até ao fim sequer a nós próprios porque a viagem
tem esta coisa de nos provar que já não somos o que fomos

e porque haveríamos de ser separados de vidas anteriores
e colocados em lados contrários do globo
– amor que tudo move como iludes na verdade –
quero perscrutar pelo grande vidro deste vagão
a noite e descubro o meu reflexo sedentário
mas já não sou quem podia não ter usado o bilhete
na bifurcação além deixei-o para trás
e se compreendo o que antigamente era é
agora à luz da América e de ti
amor com desenlace iminente
e de todos os registos e testemunhos e gritos
de vidas por esse exigente caminho fora
sem tréguas mas com contemplações
se compreendo isto é porque compreendo dizia talvez
o tempo aqui por esta faísca em frente no espaço:
é preciso contar ao pormenor e repetidamente
o que vivemos e por que ansiámos e onde chegámos
pois é na medida em que nos movemos que mudamos
e basta deslocarmo-nos para divergirmos tu
soubeste antes de mim –  evidência que me surge com algum choque –
quando voltaste para aí depois da proposta que foste fazer-me
onde eu estava tiraste-me de lá amor
e respiraste-me ao ouvido Vai
fazendo com isso logo com que um pouco eu te perdesse
e será assim para sempre repetir constantemente por onde passámos
quem foram os nossos pais e quem julga neste momento
Vossa Majestade que eu sou quem não seremos jamais eu
envelheço falta-me a mão
para escrever e para errar quanto mais viver
importa portanto esta noite ir-te amar

vá o pensamento com o movimento e o cansaço
e algum frio que se levantou desde há bocado
não haja aspereza de palavras ou pedidos se
o que escrevo a cada quadrado de janela não fica se
modifica e passa se
expira a intensidade e o vazio a agarra – tanto
mais acerbo quanto ela for real – insisto
por ti por amor que me movi
em quatro sentidos seja total
a graça à noite

e nós no final
um pouco após a luz ainda unidos

(inédito)


Fotos: da A. © André Baio;  ilustração dos poemas: © de Amadeu Baptista


Margarida Vale de Gato. Doutorada em Literatura e Cultura Norte-Americana, é Professora Auxiliar Convidada de Tradução e Literatura dos EUA na Faculdade de Letras e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. Tradutora de textos literários de francês e inglês para português, tem vertido autores como Lewis Carroll, W. B. Yeats, Edgar Allan Poe, Jack Kerouac, Sharon Olds, Henri Michaux ou Nathalie Sarraute, e é ensaísta nas áreas de literatura norte-americana, tradução e estudos de recepção. Publicou o livro de poesia, Mulher ao Mar (2010) e, com Rui Costa, a peça de teatro Desligar e Voltar a Ligar (2011).


3 comentários:

  1. Adorei vê-la aqui! Grata pela partilha.
    Um abraço e Feliz Páscoa

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  2. Olá Margarida...Olá Amadeu Baptista...fui convidado a entrar e fiquei maravilhado com a beleza aqui tão evidente em cada canto do espaço...e li estes dois poemas muito belos...onde as palavras se tocam à revelia dos conceitos....formatam imagens julgadas impossíveis e confrontam-nos com o antes e o depois de sermos...porque nada mais parece igual de cada vez que pensamos...e no entanto, voltamos a ser, embora numa outra dimensão...comido o tempo entre viagens...os mesmos seres que carregamos na memória...um abraço do
    joão raimundo

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  3. Gosto muito do poema "intercidades". Foi publicado a primeira vez, na coletânea de vários poetas do DN Jovem em 1995.

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