Rui Cóias, poeta convidado
Mesmo na lonjura, decisiva porção iluminada,
em territórios despojados de todo o fim, em
areais de mares a desaguar desconhecidamente,
mais não olhamos senão a extensão do que vimos.
Se campos da livónia vão dar a campos da mazúria,
se mosaicos amaciam na água de banhos mornos,
e além houver só cemitérios seguindo cemitérios, e
a meio deles, parado sem vento, o bosque de bétulas,
se o sol é o lume do azeite a esmiolar o pão
ou o clarão lascado nas muralhas de helsingor,
se o enredo da morte é igual em toda a parte,
seja na flauta de santa maria ou no gaiteiro de tallinn,
é porque modulamos num lugar o que lastrou de outro.
Mesmo sem querer, ou sejam sombras afastando-se,
mais não tecemos que a linha de acasos e acertos
que uma corrente conduz, a cada um, em separado,
à passagem mais sensível do acabamento.
Mesmo isolando os lugares numa função laboriosa,
detalhando as suas divergências, e as pontas extremas
— a parecença entre o que são e o que pensámos serem,
mesmo nas regiões cruzadas por comboios extensos,
onde a noite cairá em escamas de lavanda,
seguiremos a mesma história — afundamos os pés no mesmo solo.
Naquilo por que vamos repetidamente levados,
ansiando o que se manifeste acolá na próxima enseada,
alisando com a mão os castanheiros onde inscrevemos, depois
de outros, nossos sinuosos nomes, nossos amores,
sempre tornamos ao ponto em que tudo se repete e inicia,
de que atingimos apenas um minuto só — um instante,
a lâmina que medeia o ano que passa e o ano que vem.
(in A Ordem do Mundo, 2005)
Foto: © de Alexandra Cool
2 Inéditos:
Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
wir trinken und trinken
Paul Celan, Todesfuge
Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
Paul Celan, Todesfuge
Onde vieres também tu a sussurrar nas valas, nem que faminta esteja a tua voz
e se teus olhos os vir de madrugada, perdidos pelos campos, em sítios que estremecem - eu regresso – «eu
até nas ondas do meio-dia, na linha calma das cerejas, se te vejo, margarete, eu «escureço – «e escureço
como o cabelo com o tom escuro dos violinos me escurece, como
escurece o vento nos bosques frios em que morremos, escurecem as alamedas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos.
Onde vieres também tu pelo adordo sublime do infortúnio, nem que franzido seja o teu sangue
e se teus lábios os vir ao entardecer, à hora mágica, lendo os poemas da galícia – eu regresso - «eu
até nos combóios que cavam um túmulo pelos ares, se te vejo, sulamith, eu «escureço – «e escureço
como o entardecer nas horas mais pequenas me escurece, como
escurecem as rugas pelos rostos, escurecem os poemas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos.
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James Joyce, The Dead
Na matinal iridiscência dos ulmeiros, entre o trinado do futuro e a rédea da memória
entre a florestação da secura e o leito de novembro
as ervas e a terra suspiram a pérola inanimada, e também os sinos, como outrora em connemara
deixam custódias na feição dos teixos – raízes para o fundo
no ar mais transformado em ar escuro, galgando uma natureza mais fria do que o vento
irisada de verdes pelas orlas, como a morte na sombra da sua sombra
de ano para ano, nos rostos, debaixo dos passos
de ano para ano, solenemente débil, como a visão definitiva de todos começos, toda a confidência.
Então vem o inverno, de ondulações incertas – o inverno entre as suas cercas
abandonando pequenos cismas na distância, entre a neve azul comprimindo o seu longo crescimento
na balança entre uma e outra mão despejando a sua existência imersa
e a ronda do ano dá uma outra volta na charneca
abre-se na cor do cabelo que assim parece um lenço branco no xadrez das rosas brancas
sob os pavilhões das herdades, abre-se no clamor da hera
para deixar hirsuta, escassa, a caminhar na cratera do castanho
a fina, tímida passagem, dos que vivem e que morrem.
Reprodução da gravura 'Birth of the poet', sobre o a.m de autoria de Gabrielle Jones
Rui Cóias, nasceu em 1966. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Livros publicados: A Função do Geógrafo, Quasi Edições, V. N. de Famalicão, 2000; A Ordem do Mundo, Quasi Edições, V. N. de Famalicão, 2005.
Acontece-me, cada vez mais frequentemente, ler poesia e ficar sem palavras. Esta foi a vez do Rui Cóias me deixar sem elas.
ResponderEliminarUm abraço.
não creio conhecer Rui Cóias e gostei. Obrgd Amadeu
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