quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Rui Cóias


Rui Cóias, poeta convidado



Nada existe que não tivesse começado.
Mesmo na lonjura, decisiva porção iluminada,
em territórios despojados de todo o fim, em
areais de mares a desaguar desconhecidamente,
mais não olhamos senão a extensão do que vimos.
Se campos da livónia vão dar a campos da mazúria,
se mosaicos amaciam na água de banhos mornos,
e além houver só cemitérios seguindo cemitérios, e
a meio deles, parado sem vento, o bosque de bétulas,
se o sol é o lume do azeite a esmiolar o pão
ou o clarão lascado nas muralhas de helsingor,
se o enredo da morte é igual em toda a parte,
seja na flauta de santa maria ou no gaiteiro de tallinn,
é porque modulamos num lugar o que lastrou de outro.
Mesmo sem querer, ou sejam sombras afastando-se,
mais não tecemos que a linha de acasos e acertos
que uma corrente conduz, a cada um, em separado,
à passagem mais sensível do acabamento.
Mesmo isolando os lugares numa função laboriosa,
detalhando as suas divergências, e as pontas extremas
— a parecença entre o que são e o que pensámos serem,
mesmo nas regiões cruzadas por comboios extensos,
onde a noite cairá em escamas de lavanda,
seguiremos a mesma história — afundamos os pés no mesmo solo.
Naquilo por que vamos repetidamente levados,
ansiando o que se manifeste acolá na próxima enseada,
alisando com a mão os castanheiros onde inscrevemos, depois
de outros, nossos sinuosos nomes, nossos amores,
sempre tornamos ao ponto em que tudo se repete e inicia,
de que atingimos apenas um minuto só — um instante,
a lâmina que medeia o ano que passa e o ano que vem.


(in A Ordem do Mundo, 2005)



Foto: © de Alexandra Cool



2 Inéditos:

Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
 wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
 wir trinken und trinken
  Paul Celan, Todesfuge

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
Paul Celan, Todesfuge


Onde vieres também tu a sussurrar nas valas, nem que faminta esteja a tua voz
e se teus olhos os vir de madrugada, perdidos pelos campos, em sítios que estremecem - eu regresso – «eu
até nas ondas do meio-dia, na linha calma das cerejas, se te vejo, margarete, eu «escureço – «e escureço
como o cabelo com o tom escuro dos violinos me escurece, como 
escurece o vento nos bosques frios em que morremos, escurecem as alamedas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos. 
Onde vieres também tu pelo adordo sublime do infortúnio, nem que franzido seja o teu sangue
e se teus lábios os vir ao entardecer, à hora mágica, lendo os poemas da galícia – eu regresso - «eu 
até nos combóios que cavam um túmulo pelos ares, se te vejo, sulamith, eu «escureço – «e escureço
como o entardecer nas horas mais pequenas me escurece, como 
escurecem as rugas pelos rostos, escurecem os poemas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos. 


 
*****

A few light taps upon the pane made him turn to the window. It had begun to snow again. He watched sleepily the flakes, silver and dark, falling obliquely against the lamplight. The time had come for him to set out on his journey westward. Yes, the newspapers were right: snow was general all over Ireland. It was falling on every part of the dark central plain, on the treeless hills, falling softly upon the Bog of Allen and, farther westward, softly falling into the dark mutinous Shannon waves. It was falling, too, upon every part of the lonely churchyard on the hill where Michael Furey lay buried. It lay thickly drifted on the crooked crosses and headstones, on the spears of the little gate, on the barren thorns. His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead.
James Joyce, The Dead


Na matinal iridiscência dos ulmeiros, entre o trinado do futuro e a rédea da memória
entre a florestação da secura e o leito de novembro
as ervas e a terra suspiram a pérola inanimada, e também os sinos, como outrora em connemara
deixam custódias na feição dos teixos – raízes para o fundo 
no ar mais transformado em ar escuro, galgando uma natureza mais fria do que o vento
irisada de verdes pelas orlas, como a morte na sombra da sua sombra
de ano para ano, nos rostos, debaixo dos passos
de ano para ano, solenemente débil, como a visão definitiva de todos começos, toda a confidência. 
Então vem o inverno, de ondulações incertas – o inverno entre as suas cercas
abandonando pequenos cismas na distância, entre a neve azul comprimindo o seu longo crescimento
na balança entre uma e outra mão despejando a sua existência imersa
e a ronda do ano dá uma outra volta na charneca
abre-se na cor do cabelo que assim parece um lenço branco no xadrez das rosas brancas  
sob os pavilhões das herdades, abre-se no clamor da hera
para deixar hirsuta, escassa, a caminhar na cratera do castanho
a fina, tímida passagem, dos que vivem e que morrem.



Reprodução da gravura 'Birth of the poet', sobre o a.m de autoria de Gabrielle Jones



Rui Cóias, nasceu em 1966. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Livros publicados: A Função do Geógrafo, Quasi Edições, V. N. de Famalicão, 2000; A Ordem do Mundo, Quasi Edições, V. N. de Famalicão, 2005.

2 comentários:

  1. Acontece-me, cada vez mais frequentemente, ler poesia e ficar sem palavras. Esta foi a vez do Rui Cóias me deixar sem elas.
    Um abraço.

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  2. não creio conhecer Rui Cóias e gostei. Obrgd Amadeu

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