PRISÃO DE CRISTO
Malco está a meus pés, com a cabeça ensanguentada
pela orelha cortada. Simão Pedro empunha, ainda, a espada,
ou porque ouviu as trombetas, ou porque alguma coisa o deslumbra,
em mim, ou na soldadesca que avança. E Judas, vestido de amarelo,
toma a minha face direita e beija-me, ternamente. A minha solidão
é insuportável, mas nada faço contra tantas moedas, o preço raso
de um campo de sangue. Aguardo, apenas. E faço-me o viático
que me alimentará, sendo que a bruma é uma lei inexorável.
O que me respondo que não seja só silêncio, não sei.
Sei pouco do que sou, entre homem e noivo a caminho do Tetraca
que me apresentará ao Cônsul
de quem não posso dizer não ser mais um amigo,
embora ele não saiba muito bem o que é a amizade
e eu só tenha o exemplo de Iscariotes para lhe dar: segue-me
para todo o lado, adivinha-me os passos, lê-me o pensamento
e entrega-me, quando é chegada a hora
– entrega-me, sem mais.
Agora é tudo simples, límpido e simples
como num salmo ou um poema:
Malco reconcilia Simão Pedro e a sua espada
e Simão Pedro reconcilia Malco, pelo seu ferimento,
bem como Judas me concilia
com o meu destino e eu reconcilio o destino
de Judas e da soldadesca
que me veio colher à flor do mar e do enigma,
enquanto eu, com tanta solidão insuportável,
rejubilo por esta companhia,
a companhia de dois toros de oliveira,
um cão e um braçado de sarmentos
para que baste o que basta
e já não basta.
(in Sobre as Imagens, Cosmorama, Maia, 2008)
Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Prisão de Cristo', óleo s/ madeira, 1501/6
Partilhei este seu poema no Facebook, Amadeu. Obrigada.
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