GUSTAVE COURBET: A ORIGEM DO MUNDO (1866)
Para os que esqueceram
a nudez com que aqui chegaram,
e de onde todos chegam,
crio.
A perda,
a perda que é sempre só resgate,
vem comigo,
quer dizer,
ponho-a nos quadros
para que, na exibição do ultraje,
nada se extinga,
nada se perca
e tudo se transforme.
Este é o rosto invisível de um quasar,
e a mulher que posa é Joanna Hiffernan,
a amante de um amigo,
enquanto o mundo,
o velho mundo,
se esquece que há em Deus
muitos mistérios
e que são os homens que os fazem.
O que se escuta, aqui?
Talvez só se escute alguma coisa estranha,
que os ocres e os vermelhos sublinham
com as insinuações brevíssimas na folhagem
que corre no talude.
Ou o ruído,
quase imperceptível,
de uma aranha a fazer a teia,
a luminosa teia da manhã.
Ou, talvez, se escute
a dimensão do universo,
com os seus firmamentos irreais,
as suas bocas, hiantes,
a adocicar os negros,
os meios tons,
a grave claridade de um grito a derramar-se
no fundo de um ribeiro.
Ou isso, ou muito mais:
o pôr-do-sol,
as raparigas que passam com os seus lenços
brancos,
perseguidas por homens em cujos olhos
vai o carro de Zeus,
e Apolo,
e as Eríneas,
e a aurora,
com o seu labor operário
no ar recém lavado
da imundície da cidade,
onde a soberba dos ricos
ainda dorme
e onde há órfãos insones,
em busca,
pelos cantos,
de um pão, ainda que recesso.
Eu crio:
estrume,
ou esterco,
crio,
para que o meu testemunho,
sob o efémero,
possa aguilhoar as almas
e consumar
a união entre o diverso e o transitório,
e não haja mais escândalo
que o escândalo
de ser a soberba a nossa ignorância
e a nossa ignorância a desventura.
O que há para ver nos genitais de Joanna?
O fogo?
A presença divina?
A parte da memória que não sabemos
onde está escondida?
A anunciação?
A carroça de feno que os peixes
empurram porque não há
estrelas na noite?
A expectação?
O ribombar dos canhões
no campo de batalha?
O fim de tudo?
A deposição?
O terror do martírio?
A serpente?
Ou só, apenas,
o indício seguro
de que a nossa humanidade é assim,
terna e tenra,
oferente e solícita,
ainda que tudo seja
aterrador
e a aflição
nos cerque?
Joanna é doce,
suporta sem queixume
a pose que lhe impus,
e sabe como,
no princípio,
cobria tudo a treva,
e a mulher chegou
toda de branco,
com uma luz nos olhos e os dedos
abertos
para a farinha,
e que, aos seus ombros,
vieram aves
que, de árvore em árvore,
cantaram o fulgor das primícias,
os frutos,
o sangue vivo
que vinha da mulher numa corrente
purificadora.
Eis o conjuro:
estar vivo.
E passam nos meus olhos
imagens dos amigos,
e Juliet Courbet, dormindo,
como uma criança,
Gabrielle Borreau,
que olha o infinito,
e Besançon,
e os campos floridos,
onde brinquei em menino
a roubar ninhos,
a explorar as grutas,
a desvendar a vida.
Joanna é doce,
sorri-me quando pode
e canta,
para entreter a monotonia
a que a pose para este quadro obriga:
e eu olho-a,
e olho-me,
e escuto-a a cantar
como se fosse um pássaro de ausência,
e eu um homem
sem mais remédio
do que pintar assim
como que fascinado,
como que enfeitiçado,
a suprir uma falta,
uma falta imensa na luz que me convoca.
Para os que esqueceram a nudez
com que aqui chegaram,
e de onde todos chegam,
crio,
apenas.
(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CM Sintra, 2009)
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