terça-feira, 6 de maio de 2014

Aniversário

POEMA DO SEXAGÉSIMO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO

Do pai ausente quis seguir o exemplo
E cantar coisas que não podia ter,
Intrepidez, aventura,  insubordinação,
Lápis coloridos para pintar as rosas.

Gostava de ter tido uma mãe
Que me levasse ao colo, a ver os patos.
Mas nem essa sorte tive, os lagos
Congelaram no ano em que nasci

E nunca disso puderam refazer-se.
Aos meu filhos também disse adeus.
A água da comporta foi-me areia
Que se tornou com o tempo movediça.

Com os anos tudo o mais perdi.
Talvez porque cultivo versos
Perante a desonestidade idiota que me cerca.
Com a faca apontada ao peito,

O que me resta é apenas a montanha
Em que observo a junça a invadir
Os campos férteis. Volvidos os sessenta
Mijo para os sapatos com a mesma decisão

Com que compro cigarros. Não tenho
Emenda. Os pés inchados de nada
Me asseguram do que é errado ou certo.
Nem mesmo a morte, que virá não tarda.

Despeço-me das ravinas e dos canaviais.
As praias envolventes estão erodidas,
Assim como as sementes estiolam,
Lírios, delírios, tenacidades, perdas.

A noite é circular e é uma desvantagem
Espreitar de longe as transumâncias
Com que os meus contemporâneos
Se afastaram da fonte e do sonho original.

Queria conhecer o que é estranho
E da árvore da vida se recolhe.
Esta maçã tem bicho e não se sabe
Quem entre nós fomenta a desventura

Social, económica e financeira
E faz com que tudo remonte à decadência
Em que todos somos escravos de uns poucos.
Estou de joelhos, sobre a terra imposta.

Acompanha-me um cão e uma estrela.
O amor é um barco e sou um naufrago,
Que não sabe o que faça o coração.
Incompatível, avanço na ruína

Para escrever não sei se uma elegia,
Se uma ode. O meu maior desgosto
É ver que há séculos o povo morre à fome.
Não faço testamento. Quem vier por último

Que feche a porta e apague a luz.
Duas moedas tenho sob a língua
Para entregar ao barqueiro que me leve
Deste inferno para outro mais honrado.

Nesta zona onde os comboios param
E, sem remédio, os mais jovens partem
Para o estrangeiro, não me conteis alheio
Da revolta de ter nascido aqui.

Sem que saiba o que seja o real e a realidade,
Fui sempre um pessimista pró-activo.
À pátria nada devo, que me comeu a carne
E agora esmaga os ossos.

Dia de aniversário, dia de me agarrar
Ao corrimão porque a vertigem
É uma epidemia de pragas e uma rusga
Do que ao longo dos anos me roubaram.

A ninguém quero mal, ainda que  o bem
Que possa desejar seja limitado. Que os melhores
Prevariquem e que o rebanho tenha disponível
Um prado de azevém em que se ceve.

Continuarei a sangrar pelos ouvidos.
Entre o desterro e o exílio porém não pararei
De me rir muito e de chorar, às vezes.
O riso pela dor – o pranto digno.

Cadáver adiado não serei. A minha vez
Virá mas hei-de espernear como um danado,
A distribuir manguitos pelos que
A morte me acirram em cada dia.

Para o ano espero vir aqui de novo
Meter o nojo que há muito meto.
Não serei cão de cego, nem passarei ao largo.
Hei-de ladrar e morder a um só tempo

Como um bom cão de caça que, querendo,
Também sabe pescar no mar bravio.
Ignore-me a crítica e esses chanfrados
Que escrevem poesia no vácuo do vazio

Como se os atendesse o eterno e metessem
P’ra veia o ópio niilista do seu ódio
Para ficarem bem no pedestal. Não sou maior
Nem menor que os outros todos.

O alçapão que tenho é abrangente,
Cabe lá muita gente, amigos, inimigos,
E o mais que venha cair no meu expresso
Servido com açúcar pela manhã,

Assim que o sol se ergue e a sombra arde.
Por este desatino me decido, a aguardar
O decisivo enfarte que me leve. Hip hip
Hurrah! Sem exagero ou modéstia falsa

Digo que esta pomada é do outro mundo.
Bebamos, Lídia. Deixemos por instantes
Os astros, o governo das orbes, a indiferença.
São do Correia Garção os cristais limpos

E enorme a vontade que tenho de esquecer
O infortúnio de alguns convivas
Que mesmo assim beberão comigo,
Este tinto, este néctar, esta cicuta.

Que nada fique aqui por celebrar,
Os pastores que cantam nos montes,
As areias brancas da infância,
As mulheres magníficas que os sonhos

Perpetraram nos ermos da memória
Como bálsamo, bênção e alucinação
Que se há-de querer sempre até que morte
Seja a única carícia que se espera.

Por hoje fiquem as palavras que me deram,
Um livro, um búzio e umas sandálias
Que hei-de encher de areia para que o mundo
Vá nos meus passos para qualquer parte.

O mais há-de ficar como já está.
Ortigas nos lameiros e gatos nos telhados,
Cerejeiras em flor naquele pátio,
O encantador perfume dos limões,

A frescura das fontes e dos poços,
A luz que declina, toldada e leve,
Uma ou outra fogueira dos despojos da floresta
De nuvens que carrego sobre os ombros.




Nota: as palavras em itálico roubei-as a Correia Garção, poeta português do século XVIII



inédito © do poema e da foto: Amadeu Baptista





2 comentários:

  1. Os meus duplos parabéns: pelo aniversário e pelo belo poema.
    E permita-me o brinde:

    Aos amigos, "este néctar, este tinto"!
    Aos inimigos, a cicuta e o absinto!

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  2. Parabéns duplos, pelo dia e pelo poema: com «um livro, um búzio e umas sandálias» se faz o caminho. Obrigada pela partilha do texto.

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