segunda-feira, 19 de maio de 2014

Um poema de 'O Claro Interior'




Nem toda a ausência é ausência.

Conheço o tumulto da ausência no coração dos homens,
conheço o surpreendente silêncio da ausência
que irradia sobre a perenidade,
conheço a ausência em que o sonho
transforma a pedra em cristal,
um elemento vivo no coração.

De tanto esperar o homem fixa abruptamente o sol,
é uma cegueira atroz e benéfica,
olhar o sol fixamente é ver o ramo púrpura dos cíclames
onde o êxtase encontra um caminho,
um porto de abrigo.

Às vezes, encontro-me perdido na ausência,
na minha ausência todas as cores se recobrem
de finíssimas películas de ausência, pequenos focos
de luz onde está inscrita uma lágrima e o coração
resplandece no súbito silêncio.

Às vezes, a ausência é uma oração, uma palavra
vertida no sangue para que a escuridão se desvaneça
e da ausência irradie um feixe de relâmpagos
onde é ainda possível a salvação,
onde é ainda possível um brilho na obscuridade.

De tanto esperar o coração sobressalta-se,
o coração pode mesmo rebentar
por tanta ausência acumulada,
o coração é um animal selvagem e frágil
que percorre a ilusão do mundo
no espaço exíguo de um tronco e uma casa.

A minha casa é a ausência,
a minha ausência é a treva,
o fogo da minha ausência atravessa a noite
e extasia e consome o meu corpo,
um elemento vivo no coração.

Nem toda a ausência é ausência.

Conheço a transfiguração do silêncio no exercício da ausência,
conheço o sobressalto no coração quando a ausência
atravessa essa nesga de céu que nos separa,
essa nesga de céu que perscrutamos incrédulos.

De tanto esperar o homem fixa tremendamente o mar,
é uma cegueira atroz e benéfica,
olhar o mar tremendamente e encontrar a ausência irradiante
de um navio em direcção a um lugar
que apenas existe porque a ausência sulca.

Às vezes, a ausência encontra-nos perdidos,
a ausência quando nos encontra é um poderoso arco-íris,
uma finíssima película de ausência
que os anjos que passam plenos de brancura
connosco atravessam na fronteira da ausência,
a fronteira do mar.

Às vezes, a ausência é apenas um gesto,
um gesto e uma chama que ilumina o deserto,
e o deserto é a ausência,
a ausência é o deserto
onde todos os poderes invocam o silêncio
quando o silêncio é atroz
no sulfuroso tumulto que nos une e separa
e mancha a ausência com a nossa ausência.

De tanto esperar o coração sobressalta-se,
o coração pode mesmo rebentar,
um elemento vivo no coração ameaça chorar
de tanta ausência na ausência acumulada
quando nos encontra a ausência,
quando toda a ausência é a ausência
e o ramo púrpura de cíclames
não encontra o caminho, o porto de abrigo.

Nem toda a ausência é ausência.

Conheço a ausência que se transforma em luz
e queima no espaço ardente do coração,
conheço a ausência onde tudo é o êxtase
e ilumina com o oiro a salvação e a perda,
conheço a ausência que permanece e resiste
e faz da ausência o pássaro e a fogueira –
o pássaro é a luz,
a salvação a fogueira.

De tanto esperar o homem perscruta avidamente o céu,
é uma cegueira atroz e benéfica,
perscrutar o céu é ver além da ausência
onde o êxtase pacifica a ausência e tudo arde, e arde
arrebatadamente.

Às vezes, a ausência é apenas a tempestade
que prenuncia a bonança incontornável,
a ausência respira essa paixão extrema,
sucumbe e alastra,
sucumbe e amplia-se,
é o bálsamo em que a metamorfose ocorre
e o corpo se expande para a levitação dos nomes
onde o apaziguamento invade a luz.

Às vezes, a ausência é um círculo sobre a cabeça
e a perda transforma-se em dádiva e dúvida,
esse sinal arrebata o coração, e arde, arde,
transforma o cristal em estremecimento,
um elemento vivo no coração
que a ausência toca, cobre e alucina.



in O Claro Interior, Íman. Almada, 2004


© do poema e da foto: Amadeu Baptista





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