Com a
devida vénia, reproduz-se o texto de Henrique Manuel Bento Fialho, no blog ‘Antologia
do Esquecimento’, 27 de Abril de 2014, sobre o meu livro 'Fragmentos Tunisinos':
Uma leitura de ‘Fragmentos
Tunisinos’, por Henrique Manuel Bento Fialho:
Há quem diga que o título de um
livro é aquilo que o encerra, devendo o mesmo ser a página derradeira da obra
publicada. Mas tomemos de princípio o título da mais recente recolha de Amadeu
Baptista (n.1953), autor de uma das mais vastas obras da poesia portuguesa contemporânea
com reconhecimento comprovado nos múltiplos prémios de que vem sendo objecto. É
certo que no universo algo complexo da poesia portuguesa os prémios são, por
vezes, vistos com desinteresse e até algum desprezo, não sendo, porém, de
menosprezar a necessidade que impele o autor ao juízo dos júris. É assunto
sobre o qual teríamos muito a dizer, embora seja mais importante sublinhar
neste momento que, por ainda não terem sido premiados, estes ‘Fragmentos
Tunisinos’ ocupam um lugar especial na extensa produção de Amadeu Baptista.
O título aponta para um espaço
geográfico concreto, a Tunísia, outrora um dos mais importantes centros
comerciais do Mediterrâneo a partir da mítica cidade de Cartago. Desses tempos,
restam ruínas e vestígios. Ou seja, fragmentos. Que a este conjunto de poemas
se tenha dado o nome de fragmentos é uma feliz decisão, pois assim
interpretados os poemas surgem também como testemunho do contacto com uma
herança cultural da qual nos restam meros resquícios.
A poesia de Amadeu Baptista
mantém desde sempre um diálogo muito profícuo com a história e com a cultura,
estando pejada de interlocuções onde o legado civilizacional se vai
compreendendo a partir dos seus elementos mais consistentes: textos sagrados,
obras de arte, ruínas. No entanto, estas interlocuções não se processam com uma intenção epopeica. São, entes de mais, sublinhados de um tempo que passou
e nos ajuda a contextualizar a negra miséria em que nos encontramos. É
imaginando o grande edifício a partir das ruínas que dele restam que melhor
compreendemos o tempo e, com ele, a história, a nossa enquanto povo mas também
como indivíduos.
De resto, esta compreensão
estende-se à percepção que temos dos efeitos do tempo no nosso próprio corpo.
Elemento essencial nesta poesia, o corpo aparece emoldurado em ambientes
contrastantes. Se, por um lado, ele suscita a expressão de um forte erotismo,
por outro lado arrasta o verso para reflexões onde o que parece estar em causa
é a ameaça de uma vitalidade que o corpo, por múltiplas razões, já não exibe.
Sucede assim em livros anteriores, embora nos poemas de ‘Fragmentos Tunisinos’
tão contraste não esteja tão presente. A segunda pessoa a que frequentemente se
dirigem surge tanto presente como ausente, não sendo clara a sua definição.
E aqui cabe destacar a
dedicatória que abre o conjunto: memória para al-Um’tamid Ibn’ Abbâd. Poeta
luso-árabe, al-Um’tamid (Beja, 1040) personifica pela sua biografia a ruína de
um homem, tanto pela trágica e histórica amizade com Ibn ‘Ammar como pelos anos
do desterro, presídio e miséria. Cito Adalberto Alves: «Entre a memória de um
passado auspicioso e um amargurado presente vive al-Um’tamid o seu drama
pessoal, que exprime em versos de excepcional força lírica. Da adversidade faz
uma elegia. Das tristezas do quotidiano extrai poesia: um bando de aves
entrevisto das grades da cela; a grilheta que lhe rói o tornozelo…» (in O Meu
Coração é Árabe). Creio que os ‘Fragmentos Tunisinos’ de Amadeu Baptista,
asseguradas as devidas distâncias, reflectem um sentimento similar.
Ao lermos os 19 poemas, com
títulos que convocam locais diversos da Tunísia (cidades, oásis, ilhas…), acompanhamos
uma viagem que não ressoa apenas o deleite do turista embevecido com a paisagem
- «Levo na Nikon os teus pés descalços / - os caminhos do sagrado / são
insondáveis» (p.25) –, sublinhando antes
o sentimento ambivalente do nómada cuja errância é também uma profunda
experiência de solidão, pela ausência e pela distância que experimenta face ao
passado revisitado e ao presente vislumbrado. O léxico de alusões árabes
disseminado pelos poemas apela à nossa imaginação, na mesma medida em que
reconstrói paisagens das quais nos restam apenas fragmentos. Porque a viagem é
também a experiência onde o imaginário desce à realidade:
MEDENINE
Deito a cabeça na terra ocre sem fim
e sou um gigante,
troglodita.
Para que lhos compremos, as crianças atiram-nos aos pés
pequenos colares feitos de miolo de pão
– os passos da civilização jamais reconheceram os pequenos
troféus.
Entre as embalagens de película fotográfica
e o par de camaleões que a rapariga patenteia
passamos nós, como cordeiros degolados.
Nem para a turista alemã
a fascinação cessa
– contém o palmar a floresta negra.
Trinta dinares pediu Mohammed
à turista inglesa
– e ninguém regateou.
São ainda mais vastos
os grandes perigos do deserto
sem a tua presença.
Em nenhuma medina vi à venda
o azul
dos teus olhos.
(citações: in Fragmentos
Tunisinos, Volta d’Mar. Nazaré, 2014)
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