terça-feira, 29 de outubro de 2013

Tove Ditlevsen


                                             POEMAS DE TOVE DITLEVSEN



CASAMENTO

Numa paixão rememorada,
despertada pela recordação de um outro abraço,
a carícia distante de uma pele fresca,
o perfil sonhador de uma mulher desconhecida
sobre as luzes de néon da cidade –
ou talvez
por ter visto no comboio um jovem soldado
de olhos claros, em cuja serenidade ele viu
um espírito muito simples reflectir o seu
e devolver-lho, não resolvido
em toda a sua enigmática maturidade –
os seus sentidos voltam-se inquisitivos para mim,
velados por uma necessidade escura de traição.
E eu que habito inteiramente esta casa
fecundo o pó com a ideia frágil
de uma vida própria, eu que me ajoelho cada dia
perdida em orações vagas, ao lado
da fidelidade de um balde amarelo esmaltado –
observo o seu rosto furtivamente secreto,
repentinamente nu, quase indefeso,
como esses jardins abandonados que a natureza reconquistou:
só um clarão de ternura encolerizada,
entristecida, secretamente arrancada a uma morte
do amor legítimo sem causa demonstrável.
Vejo-o escapar-se e recordo-me de outras carícias
de doçura incomensurável, talvez uma vez suas,
mas que não desperta já em mim o desejo
excepto na memória, nunca mais.
Sem palavras, vingativos, negamos solitários
a faculdade de despertarmos mutuamente voluptuosidade.

Kvindesind, 1955



DOMINGO

Nunca acontece nada aos domingos.
Nunca encontras um novo amor
ao domingo.
É o dia dos infelizes.
Dia de obrigação ou dia de família.
As horas mais dolorosas da amante
quando imagina o seu amado
com os seus filhos nos joelhos
enquanto a sua mulher, sorridente,
entra e sai com tentadoras bandejas.
Um dia maldito.

Alguma vez teve que ser diferente.
Por que se não teríamos todos
que esperar com ansiedade o domingo durante toda a semana?
Talvez quando íamos à escola?
Mas já então os sinos soavam
compungidas e cinzentas como chuva e morte.
Já então as vozes dos adultos
eram débeis e insonoras como se procurassem às cegas
e em vão as palavras dominicais.

O odor a humidade e a pão bolorento,
a sonho, a botas de borracha e a chicória
já subia então pela escada
e a rua, que estava austera, vazia e diferente
de um modo desolado –
O odor dominical forrava-nos
com a grossa capa da decepção
que se segue a uma expectativa
sem fim específico.

Mas, então quando? Num lugar anterior à memória
houve felicidade, uma expectativa irresistível
que todavia ninguém tinha sido capaz de defraudar.
Então os sinos significavam que o papá estava em casa,
o bigode, as negras sobrancelhas arqueadas e o cheiro a tabaco mascado
estavam ali e ali ficavam, num lugar próximo,
e talvez o riso da tua jovem mãe
soasse mais alegre que nos outros dias.

É domingo. Tu nunca encontrarás
um novo amor neste dia.
Estás sentada na sala de estar
confundida e rígida como um boneco de cartão
aos olhos das crianças.
Escavam com os pés
e combatem-se sem energia.
«Deveríamos fazer alguma coisa», dizes.
«Sim», diz uma voz detrás do jornal.
Então calai-vos os dois, porque tudo o que tínheis ganas
de fazer é oculto e secreto
e seria inaceitável para o outro.

Os sinos da igreja soam. Os narizes das crianças
enchem-se de desesperançado odor passado.
Sobre os seus doces rostos desliza
uma fealdade passageira.
Uma luz estiolada
nasce nos seus olhos.

Mas todos esperamos o domingo
toda a semana, toda a nossa vida,
esperamos a ilusão de centos
de compridos domingos, esgotantes.
Dia familiar, dia de obrigação,
o inferno dos secretos amantes.
Esse dia em que a nauseabunda cinzentês dos adultos
impregna as crianças e estabelece
a incompreensível melancolia dominical dos anos vindouros.

Den hemmelige rude, 1961



DIVÓRCIO 1

Ele pediria
em caso de divórcio
a metade de tudo
disse ele.
Meio sofá
meio televisor
meia casa de campo
meio quilo de manteiga
meio filho.

O apartamento era dele
disse ele
porque estava em seu nome.
O caso era
que a amava.

Ela amava outro
cuja esposa ia
pedir a metade
de tudo.

Estabelecia-o a lei do casamento.
Era tão evidente como
dois e dois serem quatro.

O advogado disse
que era correcto.
Ela destruiu a metade
de tudo
e rasgou a declaração de impostos em pedaços.
Depois foi-se
ao Lar da Mulher da rua Jagtvej
com meio filho.

Escarneciam do menino na escola
porque só tinha
uma orelha.
Quanto ao mais a vida também
se podia aguentar assim,
já que não podia ser de outro modo.

De voksne, 1969



DIVÓRCIO 3

Não é fácil
estar só
as outras pessoas
olham-te com olhos impacientes
como de sala de espera.
O sonho
leva os passos
sob os teus pés.
De hora em hora
anda como que estendida da barra do ginásio.
Ao dividir o lar
não se incluiu
um vocabulário
de umas
cem palavras.

A saudade de
algo desagradável
a falta de
odores fortes.
Fumo frio
nas cortinas.
Agora a cama
é demasiado grande.
As amigas vão-se
à hora de pôr as batatas a cozer.

A liberdade
não chegará até que
não chegue
no próximo comboio
um viajante desconhecido
a que não agradam
as crianças.
A cadela
está inquieta
fareja
equivocadas pernas de calça
logo estará
com cio.

Lês livros
olhas a televisão
não percebes
nada
de repente sentes-te
muito feliz
de manhã
e desesperada
antes da noite.

Isso passa
dizem as amigas
é algo que
tens que aguentar.
Leve como
um cosmonauta
andas a flutuar
por quartos vazios
e esperas
a liberdade
de poder fazer
o que
já não tens vontade
de fazer.

De voksne, 1969



AUTO-RETRATO

Eu não sei:
cozinhar
trazer chapéu
ser acolhedora
usar jóias
oferecer flores
recordar citações
agradecer presentes
dar a gorjeta adequada
reter um homem
mostrar interesse
nas reuniões de pais.

Não posso
deixar de:
fumar
beber
comer chocolate
roubar guarda-chuvas
ficar a dormir de manhã
esquecer-me de recordar
aniversários
e limpar as unhas.
Falar
pela boca dos outros
revelar segredos
amar
lugares estranhos
e psicopatas.
Posso:
estar só
lavar pratos
ler livros
construir frases
escutar
e ser feliz
sem má consciência.

De voksne, 1969


Versão minha - © Amadeu Baptista



Tove Ditlevsen (1918-1976). Nasceu em Copenhaga. Oriunda de uma família operária, foi auto-didacta. Foi também operário. O seu primeiro livro de poesia data de 1939. Publicou poemas, contos e romances.

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