segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Doze fragmentos de Veneza



DOZE FRAGMENTOS DE VENEZA

Estou certo que não voltarei a ver-te
em Veneza, esse exacto lugar das cintilações
e dos pequenos brilhos. No vaporetto
o nosso olhar cruza-se mais uma vez,
e notamos que, algures, nos palácios do mundo,
o nosso amor já não é sumptuoso,
embora pelos teus olhos tivesse lido
Saba e as paredes vermelhas da morada
de Casanova. O cais é largo, flutuam
as flámulas da república sobre as criptas,
mas não nos voltaremos a encontrar
no caminho de Murano, onde nos perdemos,
ainda de mão na mão.

….

Na gaveta de baixo, onde encontraste
o velho exemplar de uma Bíblia
italiana, guardaste a roupa interior.
Seguidamente, gravitaste pelo quarto, a perder
peças: uma saia vermelha, um lenço azul,
uma renda de um amarelo inexorável.
O banho foi demorado, de imersão.
Depois voltaste ao quarto, sublime,
com a toalha turca enrolada na cabeça
e os seios nus, húmidos e resplandecentes.


Ver-te dormir, esta última noite:
tens o mesmo sorriso de sempre,
o sorriso de quem está acordado.


A praça de S. Marcos recebe-te com o aplauso
de um ligeiro aguaceiro. Na esplanada
do Gran Caffè fica o timbre da tua voz
a invectivar a praga de turistas japoneses
que chegaram no Mediterranean  Princess
esta manhã e que, como tu dizes, não desarmam.


Vivaldi veio aqui com as suas noventas
órfãs tocar violino. Nos teus olhos
a música instala-se e sorris
como se estivesses adormecida.

O vento despenteia-te ou és tu
que despenteias o vento? Na tua mala
guardas todos os utensílios necessários
à logística da brisa.


Só mesmo tu podes comer uma fatia
de pizza com donaire. A tua língua
miúda é o adorno que falta a qualquer boca.


Nada há mais melancólico que as janelas
de Veneza: em nenhuma delas te encontro
a acenar.


Ao fim da tarde só existes tu
e um infindável acervo de jornais.
A lídima Europa não sabe o que fazer
a tanta população desempregada e transformas
a pergunta de Montale em afirmação veemente:
Credi che il pessimismo sia davvero esistito!



Na água podre do canal ocultam-se
reflexos de ouro: os teus cabelos soltos.


Onde estivemos para que nos perdêssemos?
Nem flores rutilantes nem estrelas de néon
marcaram a nossa passagem nesta cidade aquática,
onde tu e eu despedaçamos o coração. Agora,
há só lágrimas a cair das pontes de Veneza.


Aqui vamos, com as mãos desirmanadas
e o coração gasto por escolásticas e afins.
Sabíamos como todas as paixões são peripatéticas
e que o amor acabaria um dia, embora não aqui,
entre a ponte de Rialto e o Museu da Ca’d’Oro.
Agora, sigo atrás de ti, como um gato sem sombra
num beco sem saída enquanto a tristeza ilumina Veneza
e a púrpura se transforma em densa cinza.


Poema e fotos - © Amadeu Baptista
 
 
 

 

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