POEMAS DE OLE SARVIG
CRISTO NO TRIGAL
Esta noite vi o trigo,
o trigo sonhador,
o trigo e a espiga de toda a humanidade
nestes campos.
Vi-o, esta manhã pelas cinco,
quando chegou Cristo,
a hora pálida em que nascem as crianças,
em que principiam os incêndios.
Era tão formoso. Dormiam tão aprazivelmente.
E Cristo caminhava como uma lua através do trigo.
Jeghuset, 1944
A MINHA PENA
O estranho chalé antigo da minha pena
com as suas varandas frias viradas a norte
e os quartos inutilizáveis das suas torres.
Sempre à sombra
do pinheiro verde escuro do jardim,
esquecido, atormentado por má erva,
evitado pelos homens.
Aí passeio muitas vezes só
pelos quartos sonoros da humidade,
no silêncio bafiento,
apenas quebrado pelo golpe nas paredes
que a fome dos insectos produz
– esses pequenos seres estaladiços,
que dentro de cem anos
terão transformado a casa em cinzas.
Jeghuset, 1944
NOITE JOVEM
A lua pendia repicando como um som eléctrico
na noite
que todos ouviam
Mas a alma corria por um campo
brincando como uma criança.
Jeghuset, 1944
CANÇÃO DE DESTINO
Ouço uma canção estranha
que vem de uma janela
como um destino que canta
na rua glacial
com a juba solta.
Jeghuset, 1944
CLARABÓIAS
Nuvens, barcos, grandes, negros,
as cinzentas armadas de guerra
passam a navegar por ali.
E eu estou aqui à janela
junto às minhas flores,
que procuram a luz
arrastando-se por detrás dos vidros.
Assim pois são todos eles,
os artista, os pintores,
plantas trepadoras sobre as clarabóias.
Uns não florescem nunca.
Outros dão formosas flores.
Jeghuset, 1944
PENSAMENTO EM CALMA
texto para Chirico
Atrás de templos desertos,
a praça vazia
onde a alma caminha gritando.
Uma rua desvanece-se no horizonte.
Negras sombras mortais caem pesadamente,
e o sol queima a vida deixando-a branca,
irreal.
Como pontos umas pessoas distantes cruzam
as ruas
e caminham ao longo do bordo da deserta praça da esperança.
Uma guerra espreita
muito longe dos telhados.
E o pensamento permanece silencioso
na sua torre.
Jeghuset, 1944
UMA TARDE
(dedicado a Edv. Munch)
As árvores erguiam-se
solícitas, cuidadosas, grandes,
dubitativas,
por fim verdes.
Atrás delas estava a casa,
grande.
E ao redor da praça
estavam as casas,
estranhas como sótãos e portas
como destinos.
Havia escuridão na escuridão
e uma franja branca
na rua
por onde andavam as pessoas
com os rostos fechados.
E não abrem
as suas portas-rostos
quando chamas.
Jeghuset, 1944
A TERRA PERDIDA
Lentamente levitam as cabeças dos recém falecidos
muito altas por cima da Terra.
São as enormes nuvens.
(Aquele é o jovem
que caiu com a moto.
Essa a mulher cansada
que acabou por tirar a vida.
Aquela é a rapariga que assombrada
viu florescer o fogo nas paredes do estábulo.
E há outros que se escondem por detrás deles
e não quiseram mostrar a cara.)
Silenciosas levitam agora
sobre a costa
onde a branca chama das ondas
palpita na distância.
Viajam silenciosas
(diluem-se, juntam-se)
através da acocorada abóbada cinzenta do dia.
Perderam o horizonte,
e o sol, que agora nasce e divide
a árvore da costa,
a infinitude das largas ruas das cidades
na névoa,
a multidão que se aproxima lentamente com o ataúde.
Perderam o ataúde.
A entrada e a saída secreta dos vivos
para o espaço do dia.
Olham fixamente o interior da pedra;
triste imagem das cidades.
Procuram os caminhos:
aqueles pelos quais nunca caminharam.
Da profundidade levanta um rosto o olhar.
Forstadsgigte, 1974
Versão minha - © Amadeu Baptista
Ole Sarvig (1921-1981). Nasceu em Copenhaga, onde estudou arte e desenho. Estreou-se em 1943. Viveu em Espanha. Tradutor de Ortega e Gasset. Ficcionista.
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