domingo, 19 de junho de 2011

Rembrandt




REMBRANDT: AUTO-RETRATO(S)  (1640)





Não me afasto: o rosto está sobriamente exposto

e olho em frente como se mais nada haja

ou tudo seja só imprecação.



Não é altiva a luz, mas no olhar

eu sei que pus derivas infinitas

e interrogações

para que jamais terei uma resposta

além da que talvez lamente ter já dado,



enquanto no desenho amplificava

a água verdadeira do milagre

e via a morte.



Sei exactamente porque vivo

e esta praia não se silencia

quando os meus olhos seguem a gaivota,

a tela azul do céu,

o grão que a terra encerra.



Mas quem me vir dirá que esta sombra

é só um desdobramento de sombras em que estou

uma figura parada,

que em silêncio

tem que dizer tudo.



E, sendo que assim é,

desenho, apenas,

sabendo que o desenho

é mais do que alguma vez irei saber,

sendo que a austeridade do silêncio

só é ouvida

por quem nada sabe,

e eu,

sabendo pouco,

sei que sei demais.



Algumas coisas sei que, no retrato,

claramente digo,

porque apresento o meu rosto a quem me vê

e não desvio o olhar

e, pelo olhar, demonstro

que só pela atenção se pode crer.



Assim fazendo amplio o mistério

que na pintura adenso,

sabendo que o silêncio pode ser

a minha filha morta,

Saskia a escarrar num lenço

porque o sangue se amontoa na garganta

e a asfixia,

ou o meu filho que,

nocturnamente,

chora,

sem saber porquê.



Quem me olha de longe sabe ao certo

que homem sou,

ou imagina, apenas, que a fama e o renome

me acalentam o corpo

e os pincéis,

de modo a que eu seja só tranquilidade?



Ou, dizendo de outra forma,

será que me invejam porque vêem

quem nunca hão-de ser,

ou congeminam que o talento basta

e que nenhuma dor pode abate-lo?



Se lhes dissesse que, neste momento,

não sei quem sou,

tal como sempre de mim tudo ignorei,

passariam de largo no museu

onde o meu rosto,

este, ou qualquer outro,

está exposto.



E eu, se lhes falasse,

só concordaria,

sabendo, como sei,

que é próprio da loucura

a mansa violência de supor

que é feliz quem está e nada diz

no enquadramento da moldura.



Mas digo-lhes que o artista

passou fome

e que o frio insuportável lhe tolheu as mãos

e que, demasiadas vezes,

só comeu uma maçã,

e que sofreu por tudo quanto viu,

sendo que viu demais para o que viveu

e pouco, muito pouco,

para o que amaria ter perscrutado

na beleza e na fealdade que há nas coisas.



A luz – desenho, apenas?



Ou manchas indeléveis

do mal que já fizemos

e nos fazem

e Deus inscreve no rastro de um cometa

que tem o nosso nome

para que nunca se esqueça como arde

a nossa alma no inferno?



Ou traços sobre traços,

ou só, apenas, a limpa sujidade que reluz

no coração oculto

da perversidade?



O subtil contraste

entre uma sombra e outra,

ou só, apenas, uma vibração mais tensa,

sem mácula, mas com crime,

por assim ser tudo

contraditório e cru?



Parado como estou nestas imagens dos auto-retratos

só sei como o devir me agiliza

a morte

e como, inconfundível,

confundo alguns sentidos

na incurável ferida de saber

que, no retrato, tudo se move, útil e inútil,

na obscura transparência do infinito.



Eu sei: na solidão

há sempre pouca esperança

e a desavença sempre se prolonga

quando alguém se vê sozinho

na vida ou na imagem

que de si mesmo tem se se lamenta.



Porém, a solidão

é o mundo à nossa volta,

o fluxo e o refluxo

da corrente do mundo

e da lição

de anatomia

que nunca se aprende,

mas se impõe aos olhos,

inteira e magnífica.



Aqui, desta parede, é só do mar

que sinto a falta, o mar

e o seu cantar de ocarinas roucas,

às vezes só sanguínea

e, outra vezes,

empastes sobre empastes

azul-turquesa

– o  mar e a tempestade.



Os visitantes passam e eu, daqui,

vejo-os passar vendo-me a mim mesmo

pelos rostos que chegam

com mágoa e amargura no olhar,

as mãos abandonadas noutras mãos,

sem mais paixão do que estarem vivos

e a morrer,

supondo-se imortais.



A luz nada lhes diz,

sequer os meus retratos os intimidam,

olhando-os nos olhos como olho,

sem mais ressentimento do que os ver

passar em direcção ao caos, ao nada e ao vazio

que lhes pulsa no peito

sem que o ouçam.



A luz – a amargura.



Envolve-me a nuca

e o cabelo,

alisa-me a testa,

adoça-me o nariz

e vem-me à boca

talvez para que o meu silêncio pronuncie

o que na roda de moleiro da infância

perdi para sempre,

enquanto vi meu pai perder

o desafio do vento e da farinha.



Aí eu sei que começou a morte

e a ronda nocturna teve início,

fazendo do silêncio o meu lugar na terra,

enquanto um rebanho de cabras ou um fruto

me ia fascinando

– e escutava o chão

e adivinhava a luz.



E a luz, essa prerrogativa inalterável,

fez de mim um súbdito insubmisso,

trazendo-me a este rosto de mil rostos

onde tudo se perde e se transforma

para que a afronta

seja quase enigmática

e se acenda e apague pelos séculos

para que eu saiba que, apesar de tudo,

valeu alguma coisa ter vivido.



Assim me hão-de ver

sem que me vejam.



Assim os hei-de ver

sem que me vejam,



mas vendo em quem me vê

o inesgotável

rumo do universo,

o rastro inexorável do cometa.



Silêncio, agora.



A tempestade é, ainda, vulnerável

e pode acontecer que um relâmpago

ilumine a funda escuridão que nos sitia



  e a luz questione o corvo e a serpente,



e quem passa e não pensa

passe e pense.



Assim se expandirão os meus retratos e à lacuna

sucederá outra lacuna

e os mortos invocarão os mortos para que,

sobre o meu rosto,

uma borboleta poise

e eu a sinta.



(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CMSintra, 2009)




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