REMBRANDT: AUTO-RETRATO(S) (1640)
Não me afasto: o rosto está sobriamente exposto
e olho em frente como se mais nada haja
ou tudo seja só imprecação.
Não é altiva a luz, mas no olhar
eu sei que pus derivas infinitas
e interrogações
para que jamais terei uma resposta
além da que talvez lamente ter já dado,
enquanto no desenho amplificava
a água verdadeira do milagre
e via a morte.
Sei exactamente porque vivo
e esta praia não se silencia
quando os meus olhos seguem a gaivota,
a tela azul do céu,
o grão que a terra encerra.
Mas quem me vir dirá que esta sombra
é só um desdobramento de sombras em que estou
uma figura parada,
que em silêncio
tem que dizer tudo.
E, sendo que assim é,
desenho, apenas,
sabendo que o desenho
é mais do que alguma vez irei saber,
sendo que a austeridade do silêncio
só é ouvida
por quem nada sabe,
e eu,
sabendo pouco,
sei que sei demais.
Algumas coisas sei que, no retrato,
claramente digo,
porque apresento o meu rosto a quem me vê
e não desvio o olhar
e, pelo olhar, demonstro
que só pela atenção se pode crer.
Assim fazendo amplio o mistério
que na pintura adenso,
sabendo que o silêncio pode ser
a minha filha morta,
Saskia a escarrar num lenço
porque o sangue se amontoa na garganta
e a asfixia,
ou o meu filho que,
nocturnamente,
chora,
sem saber porquê.
Quem me olha de longe sabe ao certo
que homem sou,
ou imagina, apenas, que a fama e o renome
me acalentam o corpo
e os pincéis,
de modo a que eu seja só tranquilidade?
Ou, dizendo de outra forma,
será que me invejam porque vêem
quem nunca hão-de ser,
ou congeminam que o talento basta
e que nenhuma dor pode abate-lo?
Se lhes dissesse que, neste momento,
não sei quem sou,
tal como sempre de mim tudo ignorei,
passariam de largo no museu
onde o meu rosto,
este, ou qualquer outro,
está exposto.
E eu, se lhes falasse,
só concordaria,
sabendo, como sei,
que é próprio da loucura
a mansa violência de supor
que é feliz quem está e nada diz
no enquadramento da moldura.
Mas digo-lhes que o artista
passou fome
e que o frio insuportável lhe tolheu as mãos
e que, demasiadas vezes,
só comeu uma maçã,
e que sofreu por tudo quanto viu,
sendo que viu demais para o que viveu
e pouco, muito pouco,
para o que amaria ter perscrutado
na beleza e na fealdade que há nas coisas.
A luz – desenho, apenas?
Ou manchas indeléveis
do mal que já fizemos
e nos fazem
e Deus inscreve no rastro de um cometa
que tem o nosso nome
para que nunca se esqueça como arde
a nossa alma no inferno?
Ou traços sobre traços,
ou só, apenas, a limpa sujidade que reluz
no coração oculto
da perversidade?
O subtil contraste
entre uma sombra e outra,
ou só, apenas, uma vibração mais tensa,
sem mácula, mas com crime,
por assim ser tudo
contraditório e cru?
Parado como estou nestas imagens dos auto-retratos
só sei como o devir me agiliza
a morte
e como, inconfundível,
confundo alguns sentidos
na incurável ferida de saber
que, no retrato, tudo se move, útil e inútil,
na obscura transparência do infinito.
Eu sei: na solidão
há sempre pouca esperança
e a desavença sempre se prolonga
quando alguém se vê sozinho
na vida ou na imagem
que de si mesmo tem se se lamenta.
Porém, a solidão
é o mundo à nossa volta,
o fluxo e o refluxo
da corrente do mundo
e da lição
de anatomia
que nunca se aprende,
mas se impõe aos olhos,
inteira e magnífica.
Aqui, desta parede, é só do mar
que sinto a falta, o mar
e o seu cantar de ocarinas roucas,
às vezes só sanguínea
e, outra vezes,
empastes sobre empastes
azul-turquesa
– o mar e a tempestade.
Os visitantes passam e eu, daqui,
vejo-os passar vendo-me a mim mesmo
pelos rostos que chegam
com mágoa e amargura no olhar,
as mãos abandonadas noutras mãos,
sem mais paixão do que estarem vivos
e a morrer,
supondo-se imortais.
A luz nada lhes diz,
sequer os meus retratos os intimidam,
olhando-os nos olhos como olho,
sem mais ressentimento do que os ver
passar em direcção ao caos, ao nada e ao vazio
que lhes pulsa no peito
sem que o ouçam.
A luz – a amargura.
Envolve-me a nuca
e o cabelo,
alisa-me a testa,
adoça-me o nariz
e vem-me à boca
talvez para que o meu silêncio pronuncie
o que na roda de moleiro da infância
perdi para sempre,
enquanto vi meu pai perder
o desafio do vento e da farinha.
Aí eu sei que começou a morte
e a ronda nocturna teve início,
fazendo do silêncio o meu lugar na terra,
enquanto um rebanho de cabras ou um fruto
me ia fascinando
– e escutava o chão
e adivinhava a luz.
E a luz, essa prerrogativa inalterável,
fez de mim um súbdito insubmisso,
trazendo-me a este rosto de mil rostos
onde tudo se perde e se transforma
para que a afronta
seja quase enigmática
e se acenda e apague pelos séculos
para que eu saiba que, apesar de tudo,
valeu alguma coisa ter vivido.
Assim me hão-de ver
sem que me vejam.
Assim os hei-de ver
sem que me vejam,
mas vendo em quem me vê
o inesgotável
rumo do universo,
o rastro inexorável do cometa.
Silêncio, agora.
A tempestade é, ainda, vulnerável
e pode acontecer que um relâmpago
ilumine a funda escuridão que nos sitia
– e a luz questione o corvo e a serpente,
e quem passa e não pensa
passe e pense.
Assim se expandirão os meus retratos e à lacuna
sucederá outra lacuna
e os mortos invocarão os mortos para que,
sobre o meu rosto,
uma borboleta poise
e eu a sinta.
(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CMSintra, 2009)
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