segunda-feira, 13 de junho de 2011

Francis Bacon


FRANCIS BACON: STUDY FOR CROUCHING NUDE (1952)

(para José Manuel Vasconcelos)

Os cães,
essa corda de cães
a ganir ao relento
e a lamber as feridas gangrenadas

  ao que vêm,
se a este território
só chegam os eleitos,
com os seus cetins cinzentos
de abóbada celeste?

E eu, como os suporto,
como os vejo,
sabendo que sou deles
pela carne e os ossos
e, mais profundamente, pelo uivos
aterradores?

Estou aqui
para não me conter,
e sei que o meu trabalho
é exaurir e exasperar,

enquanto sigo
a cor
e, de mim para mim,
pressinto, em cada esquina,
a lancinação

dos cães a apodrecer.

Como os suporto,
como me contenho
de lhes ladrar também
enquanto se ilumina a montra do talhante
e, sobre a carne,
o cutelo se abate
para a deflagração?

Que crime estabeleço
para pôr no que faço
o que me fazem os cães
da ignomínia

  se não consigo,
na insustentável máquina das cores,
fazer vibrar no escuro,
a dor,
eficazmente?

Ah, a vida:

se aqui cheguei,
que insígnias escolho
para a confrontação
com a sangueira que corre
pela estrada?

A escuridão do roxo,
servirá?

Será que a carne admite
a transmutação de cada pincelada
de modo a que se veja,
e a que se sinta,
a putrefacção?

Ou é preferível
usar
este tom violáceo
que nas cerdas se amontoa
e faz com que na boca
cresça a aguadilha do meu nojo?

Este vermelho,

figurará no quadro
o âmago da alma
e o horror nos tímpanos
com que a arrogância
se expande na cidade,
enquanto a fúria dos cães nos amedronta?

Os cães,
essa corda de cães
martirizados,
a ganir ao vento
e a lamber as feridas gangrenadas

  como posso
acirrar-lhes o fogo
e acossá-los?

No osso inciso,
na grande obra incompleta,
sou uma válvula de vácuo
e um transístor,
a desfragmentação
e o cromatismo
que resiste à vileza
e vê no crime
o imparável modo de estar vivo,
a aprofundar a refrega dos subúrbios,
como arte,
dissipação,
incandescência.

E os ferros progridem
sobre a minha cabeça,
e não creio

– quem sou já pouco importa
porque os cães estão em todo o lado,
e devoram as casas,
e sobem aos telhados para devorar
os livros,
e, nas jaulas,
amontoam cadáveres,
instantes peregrinos
com cabeça de rádio
e desorbitados olhos
pelo terror do urânio,
as múltiplas engrenagens.

Vacilo, eu?

Hesito e não hesito
neste páramo de ódios
e incertezas pútridas,
cósmicas,
telúricas
pelo dentes acerados
da matilha?

Como não basta pôr termo
às mortes assassinas,
sob o empaste?

Circulo,
envilecido,
na proximidade das morgues
e a matéria do mundo

  cadaverosa,
a tinta.

Mas há um escalpelo
sobre a mesa
e, onde durmo,
um sonho extravagante,
revestido a ouro,
que pulsa na agonia.

E não quero nada intacto,

e dou uso
ao branco e ao verde
para que a luminosidade mostre
o esplendor da nudez,
e o óleo arda,
e a sagração amplie
os contornos da dor que, sobre os corpos,
reluz,
torcionariamente.

Ah, os cães:

essa corda de cães ajoelhados
com o ódio a vibrar
nas suas línguas pútridas,
a ganir ao relento
e a lamber as feridas gangrenadas.

Eles e eu,
num acareação
de maldição e praga,
onde os gritos são o silêncio
vasto
das lágrimas dispersas
pelas coisas:

uma grade,
um elefante que atravessa a noite,
um sinal da exterminação,
os uivos que se escutam
de Berlim a Londres,
a crucificação,

o sangue da chacina,
as cores da abstracção.

Eles e eu,
numa acareação
em que não há metamorfose
e tudo é a terra desolada da infância
onde correm cavalos
degolados
e as três graças
estão cegas,
surdas,
e em silêncio

como se já tivesse vindo o apocalipse
e os cães tivessem derrubado os cavaleiros
para sempre.

Ah, os cães,
eles e eu:
essa corda de cães
a ganir ao relento
e a lamber as feridas gangrenadas.


(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CMSintra, 2009)

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