quarta-feira, 15 de junho de 2011

Vermeer


VERMEER: A RAPARIGA COM CHAPÉU VERMELHO (1666-1667)

Os espelhos têm a profundidade
da água,

Delft é o silêncio profundo
da minúcia,

aqui procuro nos detalhes
o que a morte
transmite ao sublime,

as suas minudências aflitivas
onde o tempo declina
e, de encomenda em encomenda,
transijo para sobreviver.

Que pode um génio
perante quem tem a fome
por herança?

Que posso eu fazer
com as humildes tintas,
senão reter o quotidiano
das mulheres,

esta que lê,
esta que estende os fios,
esta que serve o leite
e coroa o pão,

sendo que Delft
não é a transparência
a que aspiro

e eu só sei da beleza,
e pouco mais?

A luz, esta doçura
acuada pelas salas,
é, talvez, o que me faz exprimir,
lenta e eficazmente.

Porque o mais é só saturação
de ruído,
os barcos no canal

como asas
de um voo precário,
ou um meio de transportar no ventre
a míngua
– e nada mais.

Sei bem porque assim falo:

vendo por comida o meu labor
e vejo como é com subtil escárnio
que pagam por um quadro

uma porção de hortaliça
e alguma carne
que mate a fome aos meus,

enquanto tento
que o magnífico seja
a minha soberania,
a minha arte,
ainda que os brilhos pouco brilhem
e contenha a raiva

sob a calma aparente dos meus quadros.

Às vezes,
não parece:

mas sou um ser
acossado,
transido por insónias
e ansioso
pelo resultado das vendas
no mercado,

as telas que produzo
e que, não tendo preço,
me obrigam a vender por pouca coisa

e, mais do que um trabalho,
são o firmamento da casa,
a decantação da surpresa,
o perfume da lã e a cor do linho,

enquanto seja seda o que se vê
e mapas na parede,
como que a representar a alegoria
do fausto na pobreza.

Uso profusamente o amarelo
e o azul,
o mais são velaturas,
minúcias,
pormenores da atenção
sobre o real,

que não posso descrever como real,
mas como a prosperidade enérgica
dos sovinas
que emprestam com juros

e, da sordidez da luxúria,
retiram o prazer absoluto,
muito em segredo,

para que se lhes não desdourem
os negócios

e as esposas os possam suportar.

Sou um ser acossado:

o que as mulheres lêem nos meus quadros
é o que me vai no pensamento
e tenho que ocultar,

prisioneiro da infâmia deste tempo
em que os hipócritas se salvam,
ainda que não tenham salvação.

Plácido,
pacífico,
teço a harmonia dos meus traços,
que só eu sei sem harmonia alguma,

sendo que sou um homem recatado
sem recato,
um homem perseguido pela miséria,
um homem com residência fixa
sobre um pântano.

Sim, amo a beleza:

a tranquila claridade de um ombro
ou de uma boca,
a convergir na tela,
para o deslumbramento.

Adoro
estes sinais de serenidade,
a equanimidade
do que é eterno
e dura um só instante,
a reluzir num brinco,
a resplandecer nuns lábios,
a cintilar nos olhos.

Porque a vida, eu sei,
é só instantes.

Ou não a vida,
mas o que dela vale
preservar
para que a luminosidade
se expanda e permaneça
quando, a sós com o que pinto,
usufruo do indemonstrável,
do secreto.

Eis o assombro:

acaricio o silêncio
sabendo como,
para além do silêncio,
há uma boca inconsolável
que só eu conheço,
por mais panejamentos e adornos
que a abranjam,

esta tapeçaria bordada a ouro
ou um gorro branco.

E essa boca é a minha boca,

paciente,
impaciente,
apaziguada.

Não sei o que é a luz
quando não há luz,

eu poucas coisas sei.

Mas sei que vivo
a poder de instantes
e que são as minhas mãos uma água simples:

nomeio num sussurro o anil
do entardecer,
este sossego de ancas de veludo,
as sombras pelo tecto,
as colchas de damasco,
esta cadeira de espaldar,
esta mulher soberba e orgulhosa
do chapéu adornado por penas escarlates

e sei como a minha fúria
se amansa
pelo modo como a vejo
e dela me despeço
representando-a assim

parada e em movimento
sobre o tempo.


(in Doze Cantos do Mundo, Sintra Edição CMSintra, 2009)

2 comentários:

  1. Uma postagem de excelente gosto! Lindo o poema e lindo o quadro. Parabéns, Yayá.

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  2. Gosto muito da forma como veste a pele dos seus personagens! Abraço.

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