DOMENIKOS THEOTOKOPOULOS, EL GRECO: LAOCOONTE (1614)
Tudo o que me perturba
permanece
– cavalos degolados,
archeiros nas seteiras,
casas que desabam, com fragor.
De rastos,
progrido sempre em frente
e vejo tudo em volta num incêndio
incomensurável,
a roda da azenha,
o mercado,
a igreja,
o mar.
Há um momento
em que penso em abalar,
mas nada faço.
Deus,
se existir,
há-de pagar-me
os Cristos que pintei,
os retratos canónicos dos apóstolos
sempre em êxtase,
as línguas de fogo nas cabeças.
Bem-aventurados os que louvam,
digo eu,
e sobre as nuvens
pinto a pomba e o cordeiro,
as sombras dos mistérios,
as ressurreições.
Sempre que posso apelo à inteligência,
mas esta é uma época de fogueiras,
e raramente há tréguas
no repto da vingança.
E, em sonhos,
volto à Grécia
onde toda a espiritualidade
teve início,
pelo extraordinário
que há na natureza
quando as árvores se convertem
em puro engenho.
Eis como pinto:
ponho-me descalço em frente à tela
e oro,
a distender as cores para que o céu
translade esta fogueira que em mim cresce
para outra elevação,
outra proximidade do divino.
Para alcançar a glória
busco em mim
a nuvem branca,
a murta,
a cinza
e amplio a esperança
que entre o ignóbil e o abjecto
emerge dos meus contemporâneos
como delito grave, ofensa, transgressão.
E eis que Apolo vem condenar Laocoonte
por transgredir,
e, ao fundo, é Tróia que se vê,
e é Toledo
e todas as figuras são espectros:
Apolo e Artemisa,
Poseidon e Cassandra,
Páris e Helena,
Adão e Eva,
porque só Deus ordena
e só Deus castiga.
Fosse eu humilde e prostrar-me-ia
perante a vela que ilumina,
mas eu sou só um prevaricador
que usa do talento para crescer
e poder defender-se da fogueira.
S. Pedro chora de arrependimento
mas eu, pelo remorso,
diminuo-me,
ampliando a dor e a penitência,
olhando o céu
e suplicando que não seja este o nosso cálice
na estrada negra.
Mas é sempre negra a nossa estrada,
e Laocoonte
não pode usar a lança
para que se salve Tróia,
e não podem os homens esperar
senão o que lhes é prescrito
no rumo do destino,
sendo que o destino é sempre a morte
– e tudo o que me perturba permanece.
Parado, o movimento.
Aqui, onde as torres contrastam com a aurora
e a terra ferve,
sinto que o meu incêndio se aproxima:
em bom senso, juízo e natural entendimento
recebo das alturas esta doença
e acolho a morte.
Não faço testamento,
sei bem como a piedade
nos recusa os últimos pedidos
e o que arde não pode ressarcir-se
dos desígnios,
e a potestade,
atenta,
me há-de conhecer pelo indigno
que fiz
e não pelo que de mim possa deixar.
Se sei o que é a paz?
A exumação da fala nada sabe,
embora saiba o que contemplei
e a devoção
que em tudo pus.
Perder-me-ia em Veneza
se fosse esse o trato,
mas só incorporei à noite
um brilho obscuro
e relatei a dor de quem,
humanamente,
não tem como ultrapassar o fogo da vontade humana,
como ensina Plutarco
e Ariosto,
e tantas vezes me disse Paravicino,
o frade que, num retrato,
pus a sorrir-me
e escreveu sonetos a elogiar-me,
a mim,
que não sei de outro elogio
do que amar a Deus
e pintar.
A paz?
Eu penso que a paz
são os ritos consumados
e esse misto de ternura e de pássaro
que vejo,
às vezes,
nas crianças.
Mas o que são as crianças,
tantas vezes cruéis,
bravias e atrozes
quando as vejo?
A paz, presumo, sou eu mesmo,
a querer fugir do fogo,
a amontoar,
em pinceladas leves,
a narração do terrível
e do êxtase
que devo à cruz,
às cores
e à minha arte.
Do mais, mais nada sei.
Se morrer esta noite,
morro em paz.
(in Doze Cantos do Mundo, Sintra, Edição CM Sintra, 2009)
Um canto trágico, épico, digno das gregas mitologias. Um abraço, Yayá.
ResponderEliminarum canto de Paz !
ResponderEliminar