quinta-feira, 30 de junho de 2011

Eu, na infância / 9


MIL NOVECENTOS E SESSENTA

É injusta a comparação do corvo
entre os ramos da tília branca
com a morte.

Mas o meu primeiro contacto com a morte
tem um pouco dessa coincidência,
em que um rumor amplia a memória
e um vulto saltita de sombra em sombra.

Eu tinha sete anos
e ia a caminho de algum lugar
para comprar pão, laranjas, ou o que fosse
que escreveram num papel.

De súbito, vi
um vulto e uma mancha branca
a passar à minha frente,
seguidos de um estrondo.

Na esquina onde agora há um restaurante
e era a mercearia
corria o sangue
e dois corpos, lado a lado,
jaziam no chão,
caídos pelo vigor
da velocidade estonteante
e a desatenção.

No ar ficou um cheiro intenso a borracha queimada
e gasolina
e a roda dianteira do motociclo ligeiro
rodava ainda quando cheguei mais perto
com o papel do recado
entre os dedos, franzinos,

insuportavelmente franzinos
para tão brutal desgraça.

Então, compreendi;
tal como a morte,
a vida é
debalde.


(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)

1 comentário:

  1. Realmente, foi uma lembrança triste até mesmo para os versos. Um abraço, Yayá.

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