sexta-feira, 1 de julho de 2011

Eu, na infância / 10


MIL NOVECENTOS E SESSENTA E DOIS

Tenho as mãos roxas de frio
quando vou para a escola.

Tenho sempre as mãos roxas de frio
quando vou para a escola,
mesmo que não esteja frio.

Aqui não aprendo a ser fonte,
arroio,
queda de água.

Aqui não aprendo a ser trompete,
arco de violino,
tambor.

Aqui não aprendo a ser libelinha,
castor,
guarda-rios.

O que aprendo aqui
é o peso e a medida da indiferença,
o escrutínio de uma falsa aritmética
que não faz distinção entre os mortos
e os vivos,
ou os corações que transitam de sala em sala
e de corredor em corredor
para ampliar, ainda mais, o túnel.

O que aprendo aqui
é o medo, sem mais.

Tenho as mãos roxas de frio
e nada sei do azul,
nada sei das luzes rastejantes,
das luzes transcendentes.

Onde o mestre
que seja efectivamente grego ou fenício
e vá comigo a caminho de Elêusis
e do brilho?

Aqui só vejo crianças a chorar,
crianças em quem batem com ponteiros
e réguas,
crianças com as mãos roxas pelo frio
circundante.

Alguém me diz
que o bem se não mede em decilitros
e que a raiz quadrada da angústia
é exponencialmente um derrame cerebral
quando não houver mais triunfo
sobre os invencíveis?

Alguém me diz que este fumo leve
que vem das árvores é mais que a respiração das árvores
e a clorofila pertence a uma indisciplina benigna
que é preciso seguir?

Desta escola só gosto mesmo é das sandes de fiambre,
da mulher que as vende,
e dos cantos sombrios.

Estou à superfície e quero,
quero muito,
submergir na fogueira,
submergir na música,
submergir no frio que me põe as mãos roxas
e despedaça as unhas,
tecidas de esferas fascinantes.



(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)



Foto: © de Amadeu Baptista

2 comentários:

  1. Um poema bastante pessimista para uma criança ou para a lembrança de alguém. Um abraço, Yayá.

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  2. belo e marcante poema no seu conteúdo. há infâncias negras onde as côres são escassos raios luminosos fugazes e fugidios...

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