sábado, 2 de julho de 2011

Eu, na infância / 11


MIL NOVECENTOS E SESSENTA E QUATRO

Um animal, na linha de ruptura,
sobre esta memória que golpeia
sempre que compulso os livros velhos,
a arquitectura fascinada.

Brincava com o ganso,
ainda bebé,
no chão vermelho e rápido,
sob o alpendre.

Das rosas não sabia,
mas sobre as roseiras
era como um vedor,
a rosnar-lhes,
a espetar as orelhas
e a brandir a cauda.

Ainda eu vinha longe
e já lá estava,
à porta,
como num empreendimento de adivinhação
para fazer a festa,
a única festa verdadeira.

A uma voz deitava-se,
dava a pata,
fazia-se de morto,
igual ao desenho do jornal,
e, nisso usando,
portanto,
o mesmo nome arisco,
corisco.

Nada encontrei de mais leal,
de mais fiel,
entre os da sua espécie
ou da minha.

Um automóvel apanhou-o,
a poucos metros
das grades da casa.

Veio a rastejar,
pata após pata,
até que encontrou
a minha voz e os meus pés
e revirou os olhos,
com um fio de sangue a escorrer-lhe
do focinho.

Se teve alma
e houver céu,

é no céu que está a sua alma.



(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista



1 comentário:

  1. AÇOUGUE é um livro do tamanho do universo. Um livro que li compaginando o meu mundo como se fosse a minha rua ou a árvore que ocultava o rio. A realidade estava assim nos meus dedos e nos meus olhos. Cruzamos passos nos mesmos lugares, nas mesmas pedras, escutando o rumor do mundo na água fresca de uma fonte ou os segredos e mistérios da noite à mesma luz coada de velhos candeeiros. E tudo se me deslumbrou quando fui escolhido para ler e apresentar um belo, intenso e tão secreto como doloroso livro.

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