MIL NOVECENTOS E SESSENTA E QUATRO
Um animal, na linha de ruptura,
sobre esta memória que golpeia
sempre que compulso os livros velhos,
a arquitectura fascinada.
Brincava com o ganso,
ainda bebé,
no chão vermelho e rápido,
sob o alpendre.
Das rosas não sabia,
mas sobre as roseiras
era como um vedor,
a rosnar-lhes,
a espetar as orelhas
e a brandir a cauda.
Ainda eu vinha longe
e já lá estava,
à porta,
como num empreendimento de adivinhação
para fazer a festa,
a única festa verdadeira.
A uma voz deitava-se,
dava a pata,
fazia-se de morto,
igual ao desenho do jornal,
e, nisso usando,
portanto,
o mesmo nome arisco,
corisco.
Nada encontrei de mais leal,
de mais fiel,
entre os da sua espécie
ou da minha.
Um automóvel apanhou-o,
a poucos metros
das grades da casa.
Veio a rastejar,
pata após pata,
até que encontrou
a minha voz e os meus pés
e revirou os olhos,
com um fio de sangue a escorrer-lhe
do focinho.
Se teve alma
e houver céu,
é no céu que está a sua alma.
(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)
Foto: © de Amadeu Baptista
AÇOUGUE é um livro do tamanho do universo. Um livro que li compaginando o meu mundo como se fosse a minha rua ou a árvore que ocultava o rio. A realidade estava assim nos meus dedos e nos meus olhos. Cruzamos passos nos mesmos lugares, nas mesmas pedras, escutando o rumor do mundo na água fresca de uma fonte ou os segredos e mistérios da noite à mesma luz coada de velhos candeeiros. E tudo se me deslumbrou quando fui escolhido para ler e apresentar um belo, intenso e tão secreto como doloroso livro.
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