António Cabrita, poeta convidado
Poemas inéditos de António Cabrita:
QUADRAS ELIPTICAMENTE POPULARES
1
Boceja a lua brilhante sobre o mar?
Crivados de canários selvagens
Os olhos da barracuda.
2
Ao fundo, o barco à vela é um instante
De fuga, se visto do cais;
Vai aflito, o coitado, no leme!
3
Que acontece quando ipsis verbis
Nenhuma ideia vem ao espírito?
Repontam no vaso os brotos da begónia.
4
Ela respira pelos meus poros, e eu,
Sentado ao seu colo, adorno-lhe a cabeça
Como uma tiara bizantina.
5
A rosa: derradeira oferenda da alma
De um pássaro
Que nunca foi escutado.
6
Da retina dela ressalta fúlgido
O saxofone que a morte de Charlie
Parker deixou mudo.
7
A vida não tem partes,
Mas lugares e rostos,
Como a escada sem degraus.
8
Maputo é o mais poeirento
Atelier do mundo: aqui respiro
Ao encontro da luz.
9
E a flor terá de ser pelo humano
Convertida: em cais, ou, sendo rosa,
Em catarata, em cantaria.
10 (1 de Janeiro de 2008)
Acabado o fogo de artifício: quantas estrelas
entornaste tu - pergunta-me
ébrio um sapo à entrada do prédio.
11
Vista pelos buracos da persiana,
parece uma mendiga – a luz
que devasta as magnólias do vizinho.
12
Trinta graus à sombra. Para os que correm
descalços no asfalto as flores
rubras da acácia são lâmpadas em brasa.
13
Avariado o elevador (3 vezes por semana)
subo os sete andares d’olhos fixos
no Jardim das Rochas de Ryoanji.
14 (Variação em torno da célebre rã de Basho)
Schlaaaaaaap! Glu glu
glu glu! Bbzzzbzzzz!
Zzzuuuuucc!
ABERTURA DA SEPULTURA,
DEZ ANOS APÓS A MORTE DO POETA
Tão insosso pó: pano
ou pane, quem lho tira?
Omissa a memória da carne,
ou resignou? Cinzela
o osso insone: descalabro
ou design? Pensamento
puro revertido em vaso
sanitário? O filtro
da chuva não dourou
a obstrução do que, por
estrita economia, só co-
mia com talheres de prata.
O vento anela às cinzas
a extensão do mundo?
Música para elevadores,
a vaidade, nele, presque
un art, é agora male-
dicência invertida.
Geómetra de tantos vértices,
quem s’abisma inda
nos versos do que se cria
o ponto de Shakespeare?
Eis o ar, de cabeça
perdida. Um ponto.
VISITA À METRÓPOLE: CERVEJARIA FAROL
para a Ana Gouveia
Gosto de um certo desgaste nas mulheres,
dum espírito vivo a represar a carne.
Sobretudo o da mulher de dente lascado
que chama ao seu rafeiro preto Escol.
Chegámos tarde para a pressa, e agora
basta-nos uma romã, tangente
ao humor, sentados no batelão.
Duas esponjas sob 30 mil toneladas de sol.
Amontoam-se-lhe rugas aos cantos da boca
mas o seu olhar não soma desaires,
ileso até do que obviamente o fere
no enxuto gesto de despir-se.
E agrada-me o seu sorriso de bailarina
que só manca quando degola os algarismos.
Foi a minha segunda namorada, a Cervejaria Farol.
Pagas o café? Óptimo. Isso, mesa com vista
para os caranguejos da infância, antes
do atropelo da poesia, de me assombrar
o Canalleto. De súbito, lá fora –
a vidraça põe-se em pontas - a luz
plagia-a. Estaca: como se o ar
quisesse fixar a girafa em galope,
ou o seu olhar esplendesse,
doce, iminentemente lúbrico.
FALA DE EMPÉDOCLES
O espaço era uma breve andorinha
entre o meu corpo e o cipestre,
o meu olhar e o veleiro que marejava,
com ânforas de vinho, a caminho de Esmirna.
O espaço era esse limite medido
em côvados, que um dia se vazou
abrupto no ígneo anel do vulcão.
Ontem, a primeira turista espacial
entrou em órbita. Seguir-se-ão,
às golfadas, contingentes para Marte,
Saturno, e outros lugares que pedem
prévia congelação do viajante,
como se em dois arremessos
se atravessassem os arrozais do infinito.
E agora, em aflorando o sangue ao centro
de tuas coxas, meu amor, esvai-se o quê
se o divisível volveu ubíquo e o estalido
do olhar se abstém de emoldurar o horizonte?
1
Boceja a lua brilhante sobre o mar?
Crivados de canários selvagens
Os olhos da barracuda.
2
Ao fundo, o barco à vela é um instante
De fuga, se visto do cais;
Vai aflito, o coitado, no leme!
3
Que acontece quando ipsis verbis
Nenhuma ideia vem ao espírito?
Repontam no vaso os brotos da begónia.
4
Ela respira pelos meus poros, e eu,
Sentado ao seu colo, adorno-lhe a cabeça
Como uma tiara bizantina.
5
A rosa: derradeira oferenda da alma
De um pássaro
Que nunca foi escutado.
6
Da retina dela ressalta fúlgido
O saxofone que a morte de Charlie
Parker deixou mudo.
7
A vida não tem partes,
Mas lugares e rostos,
Como a escada sem degraus.
8
Maputo é o mais poeirento
Atelier do mundo: aqui respiro
Ao encontro da luz.
9
E a flor terá de ser pelo humano
Convertida: em cais, ou, sendo rosa,
Em catarata, em cantaria.
10 (1 de Janeiro de 2008)
Acabado o fogo de artifício: quantas estrelas
entornaste tu - pergunta-me
ébrio um sapo à entrada do prédio.
11
Vista pelos buracos da persiana,
parece uma mendiga – a luz
que devasta as magnólias do vizinho.
12
Trinta graus à sombra. Para os que correm
descalços no asfalto as flores
rubras da acácia são lâmpadas em brasa.
13
Avariado o elevador (3 vezes por semana)
subo os sete andares d’olhos fixos
no Jardim das Rochas de Ryoanji.
14 (Variação em torno da célebre rã de Basho)
Schlaaaaaaap! Glu glu
glu glu! Bbzzzbzzzz!
Zzzuuuuucc!
ABERTURA DA SEPULTURA,
DEZ ANOS APÓS A MORTE DO POETA
Tão insosso pó: pano
ou pane, quem lho tira?
Omissa a memória da carne,
ou resignou? Cinzela
o osso insone: descalabro
ou design? Pensamento
puro revertido em vaso
sanitário? O filtro
da chuva não dourou
a obstrução do que, por
estrita economia, só co-
mia com talheres de prata.
O vento anela às cinzas
a extensão do mundo?
Música para elevadores,
a vaidade, nele, presque
un art, é agora male-
dicência invertida.
Geómetra de tantos vértices,
quem s’abisma inda
nos versos do que se cria
o ponto de Shakespeare?
Eis o ar, de cabeça
perdida. Um ponto.
VISITA À METRÓPOLE: CERVEJARIA FAROL
para a Ana Gouveia
Gosto de um certo desgaste nas mulheres,
dum espírito vivo a represar a carne.
Sobretudo o da mulher de dente lascado
que chama ao seu rafeiro preto Escol.
Chegámos tarde para a pressa, e agora
basta-nos uma romã, tangente
ao humor, sentados no batelão.
Duas esponjas sob 30 mil toneladas de sol.
Amontoam-se-lhe rugas aos cantos da boca
mas o seu olhar não soma desaires,
ileso até do que obviamente o fere
no enxuto gesto de despir-se.
E agrada-me o seu sorriso de bailarina
que só manca quando degola os algarismos.
Foi a minha segunda namorada, a Cervejaria Farol.
Pagas o café? Óptimo. Isso, mesa com vista
para os caranguejos da infância, antes
do atropelo da poesia, de me assombrar
o Canalleto. De súbito, lá fora –
a vidraça põe-se em pontas - a luz
plagia-a. Estaca: como se o ar
quisesse fixar a girafa em galope,
ou o seu olhar esplendesse,
doce, iminentemente lúbrico.
FALA DE EMPÉDOCLES
O espaço era uma breve andorinha
entre o meu corpo e o cipestre,
o meu olhar e o veleiro que marejava,
com ânforas de vinho, a caminho de Esmirna.
O espaço era esse limite medido
em côvados, que um dia se vazou
abrupto no ígneo anel do vulcão.
Ontem, a primeira turista espacial
entrou em órbita. Seguir-se-ão,
às golfadas, contingentes para Marte,
Saturno, e outros lugares que pedem
prévia congelação do viajante,
como se em dois arremessos
se atravessassem os arrozais do infinito.
E agora, em aflorando o sangue ao centro
de tuas coxas, meu amor, esvai-se o quê
se o divisível volveu ubíquo e o estalido
do olhar se abstém de emoldurar o horizonte?
António Cabrita (1959), escritor e poeta. Tem 13 livros publicados, em vários géneros,
entre os quais «Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo» (2008), contos, e «Não se Emenda, a Chuva», poesia (2011). Mantém o blogue raposasasul.blogsppot.com
Fotos: © de Amadeu Baptista
Tão lindo...tão doce...tão dor!
ResponderEliminarinfinitas gracias por regalarnos tan magna belleza, un besin de esta amiga admiradora que se queda en tu bella morada.
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